Crítica de Filme | O Regresso
Bruno Giacobbo
Estropiado, condenado a morrer de forma lenta e dolorosa, Hugh Glass (Leonardo DiCaprio) insiste em viver. Apesar de todos os indícios contrários, ele não vê outra opção se não lutar até o último suspiro. De vez em quando, a imagem de sua esposa vem à mente. Em uma destas aparições quase fantasmagóricas, o dublê de rastreador, explorador e caçador se recorda de uma fábula que ela lhe contava. Nesta história, uma lição: nem o vento mais poderoso é capaz de derrubar a árvore com raízes mais profundas. Como um mantra, Glass se lembrará disto o tempo todo. A analogia é clara, ele é a árvore e nada, absolutamente nada, o derrubará e o impedirá de se vingar do homem a quem responsabiliza por parte dos infortúnios que tem passado: John Fitzgerald (Tom Hardy). Com aproximadamente duas e meia de duração, esta trama poderia ser cansativa e até mesmo tediosa, contudo, existem alguns trunfos que fazem dela uma obra com forte potencial para se tornar um clássico em poucos anos.
Adaptação do romance homônimo de Michael Punke, dirigido e roteirizado por Alejandro González Iñárritu, O Regresso conta a história, baseada em fatos reais, de uma expedição ao oeste selvagem dos Estados Unidos, no longínquo ano de 1823. Guiados por Hugh Glass e liderados pelo capitão Andrew Henry (Domhnall Gleeson), um grupo de exploradores precisa chegar ao Forte Kiowa com um valioso carregamento de peles. No entanto, no meio do caminho, eles enfrentarão problemas como as condições totalmente adversas de tempo, temperatura e os índios Arikaras que, inicialmente, sem um motivo aparente, atacarão de forma impiedosa o comboio, fazendo muitas vítimas. Tais dificuldades externas farão com que homens tão diferentes quanto Glass, Henry ou Fitzgerald, que também faz parte da trupe, tenham desavenças, deixando tudo ainda mais complicado.
O filme de Iñárritu é um daqueles trabalhos que costumam cair nas graças de Hollywood. Suas 12 indicações ao Oscar são a prova disto. É cinemão por excelência. Um misto de drama, épico e western, com uma trama de vingança da melhor qualidade. Tudo calculado milimetricamente para despertar reações apaixonadas em cinéfilos e críticos. Tal qual em “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (2015), a parceria com o diretor de fotografia Emmanuel Lubezki se repete. E os mexicanos abusam dos planos-sequências. Logo de cara, no enfrentamento inicial entre brancos e peles vermelhas, uma cena de batalha foi filmada usando esta técnica. Um daqueles momentos mágicos, de tirar o fôlego, que faz o mais cético dos espectadores entender o porquê da Sétima Arte ter tantos adoradores. Não é idolatria pagã e, sim, fascínio hipnótico. Fora os planos-sequências, a câmera se alterna entre closes; e amplas e belas tomadas da paisagem selvagem.
Uma das críticas que O Regresso mais recebeu, até agora, foi quanto a sua suposta falta de roteiro. Esta impressão equivocada deve-se, provavelmente, ao parco número de diálogos, como se todos os longas-metragens precisassem ser recheados de falas de efeito. Não precisam e neste caso soaria estranho. O universo retratado é de homens rudes, taciturnos e com baixíssima educação formal. Eles não são verborrágicos ou articulados, afinal, salvo alguma exceção, não teriam condições de ser. Este é o perfil, por exemplo, de Glass ou Fitzgerald. E se isto for insuficiente para justificar a linha seguida pelo script assinado pelo diretor em conjunto com Mark L. Smith, o protagonista é, lá pelas tantas, vítima, digamos, de um ‘acidente’ que o impossibilitará de falar por um bom tempo. De resto, o roteiro está ali, pautando uma história extremamente bem contada.
Os desdobramentos dramatúrgicos envolvendo o personagem de DiCaprio exigiram do ator uma interpretação bastante distinta de outros papéis que ele desempenhou ao longo de sua carreira. O falatório compulsivo de Jordan Belfort (O Lobo de Wall Street) deu lugar a uma atuação corporal, dotada de grandes silêncios, onde muito é dito apenas com o olhar. E, quando escrevo ‘corporal’, não me refiro a uma imitação de alguém que conhecemos, como Eddie Redmayne fez com Stephen Hawking (A Teoria de Tudo), ano passado. É uma atuação de fato, que nos leva a crer piamente no sofrimento testemunhado. Pode não ser o melhor desempenho de Leo, mas é, sem dúvida nenhuma, o mais marcante. Digno do Oscar que se avizinha e que, enfim, ele deve vencer. Seu companheiro de cena, Hardy, tem chances remotas devido ao chamado “Fator Stallone”, todavia, também está brilhante.
O Regresso tem ainda a direção inspirada de um cineasta que, com o passar dos anos, deu provas da sua facilidade em assumir e dirigir diferentes projetos. Filmes como “Amores Brutos” (2000), “Babel” (2006) e “Birdman ou (A Inesperada Virtude da Ignorância)” (2014) foram, de uma maneira geral, aplaudidos pelo público e elogiados pela crítica especializada. O atual trilha o mesmo caminho. É verdade que ele sempre contou com colaboradores excepcionais (Arriaga, Santaolalla e Lubezki) e atores talentosos (Penn, Blanchett e DiCaprio). Este suporte, na hora agá, faz toda a diferença. Contudo, de acordo com o significado da palavra italiana regista, que designa o ofício de Iñárritu, é o diretor que rege todo o trabalho. Logo, é ele, em última instância, o principal responsável pelo sucesso.
Desliguem os celulares e excelente diversão.
FICHA TÉCNICA:
Direção: Alejandro Gonzáles Iñárritu.
Produção: Arnon Milchan, Steve Golin, David Kanter e Alejandro Gonzáles Iñarritu.
Roteiro: Mark L. Smith e Alejandro Gonzáles Iñarritu.
Elenco: Leonardo DiCaprio, Tom Hardy, Domhnall Gleeson, Paul Anderson, Lukas Haas, Brendan Fletcher, Kristoffer Joner, Brad Carter e Forrest Goodluck.
Diretor de Fotografia: Emmanuel Lubezki.
Direção de arte: Jack Fisk.
Figurino: Jacqueline West.
Edição: Stephen Mirrione.
Duração: 156 minutos.
País: Estados Unidos.
Ano: 2015.