Crítica de Filme | Perdido em Marte
Cadu Barros
Estamos vivendo uma excelente fase de um dos gêneros mais subestimados do cinema. Filmes como o revolucionário “Gravidade” e o filosófico “Interestelar” trouxeram de volta a ficção científica a um patamar superior, com ideias interessantes aliadas a efeitos de última geração e visual arrebatador. “Perdido em Marte”, a mais nova obra do mestre Ridley Scott (“Alien”, “Blade Runner”) segue essa linha, e adiciona ainda o humor à mistura.
Quanto ao roteiro, não há como fugir da analogia óbvia: é uma espécie de “Náufrago” no espaço. Durante uma missão em Marte, o astronaut Mark Watney (Matt Damon) é acidentalmente deixado sozinho no planeta por sua equipe, liderada pela passional Melissa (Jessica Chastain). Sem ter como se comunicar com os companheiros e com poucas provisões, o biólogo passa a utilizar de seus conhecimentos para sobreviver, enquanto a base da NASA, sabendo do ocorrido, passa a bolar uma estratégia para resgatá-lo.
Boa parte da diversão está nos artifícios que Mark utiliza para se manter vivo na superfície inóspita de Marte e, principalmente, na personalidade cativante do protagonista, que nunca se abate diante da situação extrema de estar milhões de quilômetros distante da família ou de qualquer ser vivo. Pelo contrário, dotado de um excelente senso de humor, o astronauta faz piadas o tempo todo com sua própria desgraça, encontrando tempo até para se divertir escutando músicas das quais ele não gosta e desfrutando das pequenas conquistas que surgem durante sua jornada.
Porém, o que estraga um pouco a narrativa é o excesso de didatismo. Imagine se, no já citado “Náufrago”, Tom Hanks encontrasse uma camera de vídeo no meio dos destroços do avião e resolvesse explicar para o espectador cada passo seu, dizendo frases como “agora vou retirar um côco da árvore, pois preciso de líquido para me hidratar” ou “preciso fazer uma fogueira para me aquecer senão morro de frio”. Pois é, isso ocorre o tempo todo em “Perdido em Marte”. Está certo que algumas explicações necessitam sim serem feitas, dado o caráter científico de algumas experiências realizadas pelo astronauta. Mas mesmo essas informações poderiam ser mais sutilmente apresentadas, sem precisar dessa “muleta” do registro em vídeo. Os próprios técnicos da NASA poderiam ser o elo de ligação entre Mark e o público, já que eles observam e conversam entre si sobre tudo o que acontece em Marte.
Aliás, este é outro ponto negativo da obra. Por mais que sejamos apresentados a alguns personagens interessantes da agência especial americana, como o supervisor Mitch (Sean Bean), o analista Kapoor (Chiwetel Ejiofor) e o diretor Sanders (Jeff Daniels), as ações que acontecem nos bastidores da NASA acabam por quebrar um pouco o ritmo da narrative, e tiram o foco do que realmente importa no filme: a trajetória do astronauta Mark. Além disso, são tantos personagens sem importância povoando a obra que ficamos até um pouco perdidos sobre quem faz o quê na agência.
Mas se o didatismo é um ponto negativo do roteiro, os diálogos são, com certeza, o maior acerto. A interação de Mark com a equipe de astronautas e os técnicos da base terrestre é repleta de “tiradas” espertas e referências à cultura pop, com destaque àquela feita a Senhor dos Anéis em uma cena onde, coincidência ou não, está presente o ator Sean Bean, que interpretou o humano Boromir na trilogia. Por falar em elenco, o de “Perdido em Marte” é simplesmente espetacular, a começar pelo protagonista. Matt Damon entrega uma das melhores atuações de sua carreira, esbanjando carisma e conseguindo passar, ao mesmo tempo, angústia e determinação na medida certa. Outros que se saem muito bem são Jessica Chastain, bem mais comedida que o de costume, e Jeff Daniels, em um personagem ambíguo e interessante.
Os aspectos técnicos também dão show. A fotografia explora de maneira poética a aridez da paisagem de Marte, assemelhando-se muito ao trabalho esplêndido realizado em “Mad Max – Estrada da Fúria”. O desenho de som é primoroso, especialmente na sequência da tempestade, em que é possível ouvir cada pedrinha batendo no capacete dos astronautas. A montagem também não fica atrás, e um dos melhores momentos do filme é justamente um pequeno clipe que mostra a rotina dos tripulantes da nave espacial enviada ao planeta vermelho. Os efeitos visuais são impressionantes, auxiliados ainda pelo 3D de ótima qualidade (este filme sim vale a pena ser visto com o uso da tecnologia), que explora a profundidade dos corredores da nave e a ausência de gravidade de maneira brilhante (algo similar ao que presenciamos na obra de Alfonso Cuarón). Para completar, a trilha incidental do ótimo Harry Gregson Williams confere ao filme uma linda e inusitada mistura de melancolia e senso de aventura, sendo complementada de maneira orgânica com clássicos dos anos 70 e 80, utilizados para acentuar ainda mais o tom irreverente da narrativa.
Portanto, “Perdido em Marte” é mais um integrante dessa nova era de ouro da ficção científica, que parece ter novamente encontrado o equilíbrio correto entre forma (excelentes efeitos visuais) e conteúdo (roteiros inteligentes e emocionantes). Tomara que essa fase perdure por muitos anos, ainda que as premiações (leia-se Oscar) continue infelizmente a ignorar um dos (senão o maior) dos gêneros do cinema.
FICHA TÉCNICA
Gênero: Ficção Científica
Direção: Ridley Scott
Roteiro: Drew Goddard
Elenco: Aksel Hennie, Brian Caspe, Chen Shu, Chiwetel Ejiofor, Donald Glover, Eddy Ko, Enzo Cilenti, Geoffrey Thomas, Greg De Cuir, Gruffudd Glyn, Jeff Daniels, Jessica Chastain, Jonathan Aris, Kate Mara, Kristen Wiig, Lili Bordán, Mackenzie Davis, Mark O’Neal, Matt Damon, Matt Devere, Michael Peña, Mike Kelly, Naomi Scott, Narantsogt Tsogtsaikhan, Nick Mohammed, Peter Linka, Sean Bean, Sebastian Stan, Szonja Oroszlán, Yang Haiwen
Produção: Mark Huffam, Michael Schaefer, Ridley Scott, Simon Kinberg