Crítica de Filme | Tatuagem
Giselle Costa Rosa
“O símbolo da liberdade é o c* que é democrático e todo mundo tem”. Essa frase é uma pequena amostra do viés que percorre todo o enredo de Tatuagem, filme de estreia de Hilton Lacerda como diretor (roteirista desse e de tantos outros filmes como Amarelo Manga, Baixio das Bestas, A Febre do Rato, dentre outros). A sátira, o amor e a contracultura alinhavam este bom roteiro cheio de camadas de poesias, críticas sociais, quebra de tabus, desejo, liberdade de expressão, romance, sexo, apresentadas ao público por pessoas que estão colocadas à margem da sociedade.
Os caminhos trilhados pelos personagens são a busca intensa, mas não violenta, do equilíbrio entre aquilo que se quer e aquilo que se tem. Araújo, o jovem soldado do exército, mais conhecido como Fininha, vivido pelo ator revelação Jesuíta Barbosa (Serra Pelada, Praia do Futuro), vive isso na pele em pleno período de ditadura militar. No quartel, a desconfiança perante sua sexualidade incomoda a tropa. Mais a frente, vemos que a moralidade de muitos cai ao se dobrar a esquina. Já em casa, ele enfrenta o radicalismo religioso da família trombando com o seu ateísmo. Além disso, ainda tem que administrar seus encontros com sua namorada.
Clécio, vivido pelo competente ator Irandhir Santos (O Som ao Redor, Tropa de Elite 2, Baixio das Bestas), é dono de um cabaré anarquista, homossexual assumido, pai de um adolescente e líder da trupe denominada Chão de Estrelas, que faz apresentações de teatro, performances e dança. Pra quem assistiu o documentário Dzi Croquettes, verá semelhança entre os grupos, ambos dos anos setenta. Sendo que o último era composto por treze rapazes barbados com roupas femininas, maquiagem, acessórios, montados em saltos altíssimos e repletos de purpurina. O primeiro abriga homens e mulheres que compartilham da irreverência e da linguagem cênica libertária dos Croquettes. Os espetáculos da trupe propõe uma quebra ideológica do establishment.
O soldado Araújo chega ao cabaré com a missão de entregar a carta de sua irmã para Paulete (Rodrigo Garcia), seu cunhado e artista da trupe, que tem um caso com Clécio, que naquele momento está no palco cantando uma música sobre coração partido (Volta, de Johnny Hooker). A cena mostra um Araújo hipnotizado diante da performance de Clécio. O flerte é inevitável. Logo após a apresentação, eles sentam e conversam. E então temos a sequência de dança. Os olhares, o clima de sedução e romantismo tomam conta do ambiente. A cena foi construída e dirigida com extrema sensibilidade.
Nota-se nitidamente que os atores se encontram na mesma vibração, vivenciando tudo aquilo com muita naturalidade. Quando o sexo vem, apresenta-se pulsante, quase explícito, romântico, com beleza e delicadeza única. Percebe-se que não há nada de errado no universo de tantas letras representativas. Cada uma delas representa o desejo de se obter respeito por aquilo que se é. Se há incômodo, deve-se refletir sobre o modo que se sente, pensa e age diante de outra realidade.
A partir disso, temos o conflito entre Paulete e Clécio, pois o ciúme brota onde não poderia nem encenar. Pois isso não combina com os valores da trupe. Como bem disse o professor Joubert, interpretado por Silvio Restiffe (do seriado de TV Som e Fúria), “O ciúme é o primeiro indício de possessão capitalista”. Dar vazão a isso seria descarrilhar do ideal da prática do amor livre.
Mais uma vez a delicadeza com que são tratadas as relações afetivas no filme encanta. Esse longa não trata apenas da homoafetividade. Todas as relações dentro da trupe demonstram ser amorosas. Clécio é estritamente carinhoso com seu filho, que orbita irrestritamente esse mundo libertário junto com sua mãe. O que se vê é o apoio mútuo entre as partes. Diferente do que ocorre no quartel. Lá o amor à pátria é colocado em primeiro lugar em detrimento ao amor à família.
Bem, logo temos a censura encrencando com o espetáculo. No contra-argumento, o pessoal da trupe se coloca à disposição para mostrar que eles não representam perigo algum pra sociedade. De nada adianta. Acabam sendo censurados por proporcionarem em suas apresentações uma dialética entre o erótico e o político cujo corpo serve às ideias. Por não obedecerem ao que lhe foi ordenado, o exército vai de encontro à trupe. No filme, não se mostra o confronto, mas se sabe que daquilo não sairá bom resultado.
Finalmente o soldado Araújo será impelido a escolher um lado. Se antes tateava um novo modo de vida, agora lhe será dado uma oportunidade de ser quem ele é realmente. Como na autodefinição dos Dzi Croquetes: “Nem homem. Nem mulher, Gente”. Isso independente da questão de gênero; somos humanos, mães, pais, tios, primos, filhos, irmãos, amigos, vizinhos, por fim somos gente.
Tatuagem levou 4 prêmios no 41º Festival de Cinema de Gramado: os prêmios de Melhor Filme – Júri Oficial, Melhor Ator para Irandhir Santos e Melhor Trilha Musical para DJ Dolores. E no Festival do Rio 2013, recolheu mais 5 prêmios, entre eles o de Melhor Ator para Jesuíta Barbosa e Melhor Ator Coadjuvante para Rodrigo Garcia.
BEM NA FITA: direção segura e com sensibilidade na medida e a trilha sonora que acompanhou a sátira do filme.
QUEIMOU O FILME: em alguns momentos não se entende o que um ou outro ator diz. Pode ser problema de áudio e/ou simples dicção.
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FICHA TÉCNICA:
GÊNERO: Drama
ROTEIRO E DIREÇÃO: Hilton Lacerda
ELENCO: Irandhir Santos, Jesuíta Barbosa, Rodrigo García, Sílvio Restiffe, Sylvia Prado
PRODUÇÃO: João Vieira Jr.
PRODUÇÃO EXECUTIVA: Nara Aragão
DIREÇÃO DE PRODUÇÃO: Dedete Parente Costa
DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA: Ivo Lopes Araújo
DIREÇÃO DE ARTE: Renata Belo Pinheiro
TRILHA MUSICAL: DJ Dolores (Helder Aragão)
MONTAGEM: Mair Tavares
FIGURINO: Christiana Garrido
MAQUIAGEM: Donna Meirelles
DESENHO DE SOM: Waldir Xavier
SOM DIRETO: Danilo Carvalho
MIXAGEM: Ricardo Cutz
EMPRESA PRODUTORA: REC Produtores Associados
DURAÇÃO: 108 min.
ANO: 2013
PAÍS: Brasil
DISTRIBUIDORA: Imovision