Crítica de Teatro | O Dia que Sam Morreu

Giselle Costa Rosa

Nem sempre as questões que se apresentam perante nós cabem numa simples escolha. O espetáculo O Dia que Sam Morreu se propõe discutir ética, moralidade, honestidade, caráter. Temas que não podem ficar circunscritos a um sistema binário. Sutil como a pata de um elefante, a ética pisa em nós a cada trade off, nossas escolhas conflitivas. Força-nos a ter uma reflexão sobre o valor das ações sociais consideradas tanto no âmbito coletivo como no âmbito individual.

A peça joga nas mãos de cada personagem dilemas pessoais que interagem diretamente com a vida do próximo, contrapondo o desejo de cada um ao bem estar dos demais. Trabalha o jeitinho brasileiro de resolver as situações mais difíceis que por meio natural não seriam resolvidas. E mais, traz ao palco o tema dos protestos que começaram em junho de 2013 e desencadearam poucas mudanças políticas efetivas. A Cia Armazém de Teatro, um dos mais antigos e prestigiados grupos do País, colocou o dedo na ferida sócio-política do Brasil, esgarçando a ética e a moralidade.

A trama central do espetáculo se passa dentro de um hospital cujas escolhas de cada personagem irá definir o destino dos demais ao se cruzarem pelos corredores. Ninguém consegue se esquivar. Vemos até onde o código moral estabelecido exerce influência sobre a subjetividade de cada um ali em cena. E conseguimos medir a efetividade dos valores normativos de nossa sociedade através dos atos de cada personagem.

A discussão entre o inescrupuloso cirurgião Benjamin, vivido pelo ator Otto Jr., e o jovem idealista Samuel, interpretado por Jopa Moraes, é como uma fratura exposta. Somos apresentados cruamente às partes antagônicas, vistas claramente, sem nuances, numa clássica dicotomia exuberante entre o bem e o mal. Ambos os atores vivenciam cada palavra do texto de forma arraigada no que seu personagem acredita. Soa forte, como golpes diretos, com a guarda baixa, deixando a cara na reta sem medo.

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É como se utilizassem aquilo que acreditam como um escudo invisível. Assim nada os fere, podendo seguir adiante com suas crenças do que é correto pra si (mesmo que não seja para o restante ou inviável do ponto de vista prático). Samuel serve pra trazer à tona todo o ideal de um mundo perfeito onde tudo funciona e a justiça atinge a todos da mesma maneira. Será que (quase) todo mundo já foi como ele quando jovem e depois arrefeceu, atrelando a vida ao sistema sem questionar mais ou brigar por fatos mais justos?  Um final de luta praticamente compulsório. Afinal quem dará emprego formal a um rebelde?

Depois nos é permitido acessar outra camada. Aqui, deparamo-nos com o posicionamento mais claustrofóbico. A juíza Samantha (Patrícia Selonk) sofre praticamente uma emboscada moral de seu intrincado marido Arthur (Ricardo Martins). Emparedada, vê-se num dilema dilacerante. Vemos o sofrimento emergindo para a carne, sendo amaciado pelo álcool, o que não torna mais fácil sua escolha perante sua necessidade versus o anseio dos demais integrantes da sociedade.  Selonk transpira pela sua personagem, entrega-se de forma intensa e bela, atuando com firmeza. As trocas entre ela e Martins são eficazes, permitem delinear bem os pontos falhos do personagem Arthur e a expor os limites da magistrada.

Na enjambrada forma de fazermos escolhas, vivenciamos a não menos difícil vida de Sofia (Lisa Eiras), que faz sexo por dinheiro e cuida de seu pai Samir, um palhaço com alzheimer. Sofia, não tem uma tarefa menos difícil. Entretanto, talvez, por circunstância da vida, seja mais prática. E assim, essa questão da ética reverbere menos nela. Isso nos coloca a questão do esquecimento. Será que não se lembrar dos fatos ocorridos nos faria mais felizes?

O cenário, de Paulo de Moraes e Carla Berri, se desdobra e se mostra muito funcional, acompanhando e se encaixando no ritmo do espetáculo. Maneco Quinderé com sua iluminação enfatiza cada evento e contribui para a evolução da dramaturgia. Não se pode deixar de falar na música instrumental, basicamente levada numa só guitarra, que é executada ao vivo, sob a responsabilidade de Ricco Viana. Não só nos ajuda a entrar no clima, como explicita os sentimentos dos personagens em cena.

Ao final, temos a sobrevivência de cada um de nós posta na corda bamba da vida. Não importa se você é abastado ou desprovido de grana; pode-se chafurdar na mediocridade independente do quanto se leve no bolso ou do quantitativo de diplomas pendurados na parede. Parece cada vez mais difícil sonhar com algo que chegue perto do justo e igualitário. Só nos resta o vazio perante a impotência ao sistema. Não se lembrar de nada, como frequentemente nos referimos ao nosso país sendo uma pátria sem memória, muitas vezes pode ser solução para conseguir continuar a viver numa ilusão de felicidade. A outra única opção é morrer tentando. Qual é a sua escolha?

FICHA TÉCNICA:

Direção: Paulo de Moraes
Dramaturgia: Maurício Arruda Mendonça e Paulo de Moraes
Elenco: Jopa Moraes, Lisa Eiras, Marcos Martins, Otto Jr., Patrícia Selonk e Ricardo Martins
Iluminação: Maneco Quinderé
Cenografia: Paulo de Moraes e Carla Berri
Figurinos: Rita Murtinho
Direção Musical: Ricco Viana
Cartaz: Jopa Moraes
Material Gráfico: Jopa Moraes e João Gabriel Monteiro
Produção de Vídeos: José Luiz Jr., João Gabriel Monteiro e Ricco Viana
Assistente de Direção: José Luiz Jr
Assistente de Iluminação: Felício Mafra
Assistente de Cenografia: Rodrigo
Assistente de Figurinos: Rafaela Rocha
Assistente de Produção: Iza Lanza
Técnico de Montagem: Regivaldo Moraes
Preparação Corporal: Frederico Paredes e Rafael Barcellos
Preparaç
ão Vocal: Jane Celeste Guberfain
Produção Executiva: Flávia Menezes
Produção: Armazém Companhia de Teatro

Giselle Costa Rosa

Integrante da comunidade queer e adepta da prática da tolerância e respeito a todos. Adoro ler livros e textos sobre psicologia. Aventuro-me, vez em quando, a codar. Mas meu trampo é ser analista de mídias. Filmes e séries fazem parte do meu cotidiano que fica mais bacana quando toco violão.
NAN