CRÍTICA | ‘Detroit em Rebelião’ não tem medo de chocar e é de uma coragem impressionante

Bruno Giacobbo

Alguns acontecimentos jamais serão esquecidos. Há 50 anos, no auge da luta pelos direitos civis nos Estados Unidos, a cidade de Detroit viveu cinco dias de intensas confrontações entre a população e as forças de segurança. Tudo começou com uma batida policial em um clube noturno e a prisão de um jovem negro. Considerada ilegal, por quem a testemunhou, ela serviu como senha para uma série de protestos pelas ruas da metrópole. Ao todo, 43 pessoas acabaram morrendo, os feridos chegaram a quase mil e muitos edifícios foram danificados. Este quadro, de uma maneira geral, já serviria como ponto de partida um ótimo filme. No entanto, entre tudo o que aconteceu, um episódio específico pareceu, aos olhos da diretora Kathryn Bigelow e do roteirista Mark Boal, mais emblemático para servir de trama para Detroit em Rebelião (Detroit): o incidente do Motel Algiers (o grifo é meu, já que, apesar de preferir a palavra massacre, utilizei a dos artigos em inglês sobre o assunto).

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Na noite do dia 25 de julho de 1967, um grupo de jovens negros, acompanhado de duas garotas brancas, Julie (Hannah Murray) e Karen (Kaitlyn Dever), festejavam em um motel localizado na 12th Street. Até que, lá pelas tantas, um deles, Carl Cooper (Jason Mitchell), resolveu atirar na direção de policiais, que estavam do outro lado da rua, com uma arma de dar partida em corrida de cachorro. Ou seja: completamente inofensiva. Porém, agitados com toda a confusão que se alastrava pela região, eles acreditaram que estavam sendo atacados por um atirador de tocaia. O resultado desta crença foi o cerco ao lugar e a imediata prisão dos envolvidos. É aí que entra em cena o policial Phil Krauss (Will Poulter). Acompanhado de dois colegas de farda, o agente da lei comandou as investigações, disposto a tudo para encontrar a arma e obter confissões, inclusive, desrespeitar a própria lei.

Outros personagens também se destacam neste episódio do motel: o veterano das forças armadas, Greene (Anthony Mackie), que estava em Detroit atrás de emprego, Melvin Dismukes (John Boyega), o segurança de uma loja de conveniência que chegou ao local junto com os policiais; e os amigos Larry Reed (Algee Smith) e Fred Temple (Jacob Latimore), integrantes do então desconhecido grupo musical The Dramatics. A princípio, nenhum deles tinha um motivo concreto para estar ali. Se alguma coisa naquele dia tivesse ocorrido de outro jeito, eles não teriam participado desta história e suas vidas seriam bem diferentes.

O longa-metragem começa dando a impressão de que estamos diante de um novo “Dunkirk” (2017), de Christopher Nolan: uma obra mais preocupada com o panorama geral daqueles cinco dias confusos, do que em se aprofundar em alguma história propriamente dita. Assistimos, então, à uma série de pequenos eventos que formam o todo. Só depois de, pelo menos, meia hora de exibição, é que entendemos que aqueles eventos, aparentemente sem conexão, funcionam como introdução dos personagens principais. Em um deles conhecemos o policial Krauss, em outro o cantor Reed, depois o segurança Dismukes e por aí vai. E é quando reúne todos os envolvidos dentro do Motel Algiers, que o filme adquire contornos parecidíssimos com o do clássico “Mississipi em Chamas” (1988), de Alan Parker. As nítidas semelhanças vão desde o fato de ambos serem baseados em acontecimentos reais, à carga de adrenalina que, a cada cena, sobe a níveis alarmantes.

Primeira e única mulher a vencer o prêmio de melhor direção no Oscar, em 2009, Bigelow consolidou sua carreira ao comandar obras corajosas, polêmicas e atualíssimas como “Guerra ao Terror” (2008) e “A Hora Mais Escura” (2012). Apesar de toda a trama de Detroit em Rebelião transcorrer na década de 60, a questão racial ainda é bastante pungente nos Estados Unidos de Donald Trump. A coragem da cineasta está impressa em todos os frames que se descortinam diante dos nossos olhos, na forma como dirigiu e extraiu o melhor desempenho possível de seu elenco e ao não ter medo de chocar em cenas onde a violência se transforma em um sangue quente e viscoso. Tudo isto, para a felicidade do público, com o suporte do texto fluido de Boal, que junta todos os tais eventos e em um único e sólido enredo.

Em uma produção que foi feita mirando o próximo Oscar, neste exato instante que escrevo ela está cotada em algumas categorias, chama a atenção que, assim como no já supracitado filme do Nolan, não exista um ator que possa ser considerado protagonista. Este é um elenco de bons e ótimos coadjuvantes. Inicialmente, os nomes de maior destaque são John Boyega e Anthony Mackie. No entanto, quem rouba o show é Will Poulter. Na pele do policial racista, ele é capaz de despertar nossos instintos mais primitivos, uma raiva autêntica e compreensível. Odiar um vilão é sinal de que o ator fez bem o seu trabalho. Neste campo, parece a única aposta plausível para uma eventual indicação. De resto, os palpites mais seguros são Bigelow, Boal, a própria película e categorias técnicas como edição, edição de som e fotografia.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

*Filme visto no 19º Festival Internacional de Cinema do Rio de Janeiro

::: TRAILER

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Detroit
Direção: Kathryn Bigelow
Elenco: John Boyega, Will Poulter, Anthony Mackie
Distribuição: Imagem
Data de estreia: qui, 12/10/17
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2017
Duração: 143 minutos
Classificação: 16 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN