CRÍTICA | ‘Eu, Tonya’ é um excepcional remédio para quem odeia cinebiografias

Bruno Giacobbo

O esporte não funciona como tábua de salvação só aqui no Brasil. Nos Estados Unidos acontece a mesma coisa. Pessoas humildes, condenadas a uma vida de privações e dureza costumam recorrer a prática esportiva para ganhar dinheiro, ascender socialmente e realizar todos os seus sonhos. Foi assim com Tonya Harding, uma menina caipira, de Portland. Ainda criança, sua mãe, LaVonna Fay, viu que ela tinha aptidão para a patinação artística e, desde muito cedo, impôs uma rotina de treinos árduos e procurou a melhor treinadora possível. Elas tinham uma chance e a perseguiram exaustivamente. E assim como aqui também, lá, este esforço todo não livra um desportista brilhante de vez ou outra meter os pés pelas mãos e trocar o noticiário esportivo pelo policial. Aconteceu com o goleiro Bruno, ex-jogador do Flamengo, e, infelizmente, ocorreu com a jovem redneckEu, Tonya (I, Tonya), dirigido por Craig Gillespie, é a crônica desta triste história com jeito e cara de comédia de erros.

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O filme, uma das grandes sensações do último Festival de Toronto e ganhador de vários prêmios nesta temporada pré-Oscar, mostra Tonya ainda criança, vivida pela ótima McKenna Grace.  Acompanhamos sua trajetória desde os primeiros passos pelos rinques de patinação até a fase adulta, onde é interpretada por Margot Robbie. No meio do caminho, ela conhece Jeff Gillooly (Sebastian Stan), seu futuro marido. Sua mãe, papel brilhantemente desempenhado por Allison Janney, não aprova o casório por achar que ele não está à altura dela. E estava certa, pois é a partir desta união que sua vida de estrela da patinação começa a ruir. Junto com o esposo, quem passa a fazer parte da rotina da protagonista é Shaw Eckhardt (Paul W. Hauser), um dublê de segurança e faz tudo do casal (se vocês lembraram do Macarrão, o amigo de Bruno, não foi mero acaso). São eles, Shaw e Jeff, que armam o ataque à Nancy Kerrigan (Caitlin Carver), às vésperas dos Jogos Olímpicos de Inverno, de 1994.

Eu tinha recém feito 16 anos, era muito mais fanático por esportes do que por cinema naquela época. Desta forma, lembro-me bem deste episódio. Enquanto treinava, Nancy foi atacada por um desconhecido que a acertou no joelho com um bastão. Chegou a ser dito que a atleta ficaria fora das Olimpíadas, mas ela se recuperou a tempo. Serviço de bandido amador, foi fácil para a polícia achar o rastro do criminoso e chegar até Shaw, Jeff e Tonya. Sim, a princípio foi o que a investigação concluiu: que a primeira norte-americana a executar um Triple Axel (o movimento mais difícil da patinação artística) atentou contra a carreira da colega. Neste momento, o excelente roteiro escrito por Steven Rogers (não, ele não é o Capitão América) me surpreendeu. Achei que iria ver um longa condenatório, longe disto. Eu, Tonya é quase uma peça de defesa da protagonista, daquelas redigidas por um ótimo advogado. O que testemunhamos na telona é o ponto de vista de Tonya Harding.

Outra surpresa reservada para os espectadores é a maneira como o longa foi concebido: um documentário fake. Isto mesmo, não é uma simples encenação de como tudo aconteceu há 23 anos. O filme começa com uma legenda avisando que esta é uma obra baseada em entrevistas livres de ironia, extremamente contraditórias e totalmente verídicas. Em seguida, a câmera foca em uma Tonya já desgastada pela ação do tempo, acendendo um cigarro. É Margot Robbie. A partir daí são mostrados outros depoimentos e cenas retratando o que os entrevistados estão contando. Estas tomadas funcionam como lembranças. Assim, de uma forma anárquica, o diretor vai envolvendo o público. Não são raras as situações em que ocorre a quebra da quarta parede, os atores olham para as lentes e passam a falar como se estivessem conversando com quem está assistindo. Apesar das diversas versões, este recurso ajuda a deixar ainda mais claro que é a história de Tonya que importa.

Este estilo todo talvez soasse vazio se não fosse acompanhado de interpretações vibrantes. E é exatamente isto que encontramos nas figuras de Margot Robbie e Allison Janney, uma jovem atriz de 27 anos e uma veterana de 58 que tomaram de assalto a Indústria de Hollywood, nesta temporada. Margot vem de papeis de destaque em “O Lobo de Wall Street” (2013) e “Esquadrão Suicida” (2016). No último, até os detratores do filme da DC concordaram que ela está muito bem. Ou seja: provou que é mais do que um rostinho bonito e abiscoitou alguns prêmios. Já Allison, apesar de uma extensa lista de trabalhos cinematográficos, é mais conhecida por suas atuações em séries de televisão, entre elas “The West Wing” (1999 a 2006), de Aaron Sorkin. Só que aqui, neste longa, ela está odiosamente fantástica. É fácil detestá-la. Arrisco dizer que é a melhor atuação feminina candidata ao Oscar desde Cate Blanchett, em “Blue Jasmine” (2013). Aliás, as duas merecem um Oscar.

Eu, Tonya é um excepcional remédio para quem odeia cinebiografias. Tiro e queda para afastar o ranço que alguns filmes convencionais, muitas vezes, provocam. O desconhecido diretor Craig Gillespie poderia ter utilizado uma fórmula tradicional. Era mais seguro, entretanto, dificilmente teria alcançado tanto sucesso com esta produção que, no início das premiações, estava fora do radar da maioria das pessoas. Além do que já detalhei nesta crítica, há outros aspectos que são dignos de nota e elogios. Reparem como as letras das músicas da trilha sonora casam com os personagens e com que está acontecendo na tela. O figurino e a direção de arte, reconstituindo o clima do finalzinho da década de 80 e início dos anos 90, são um primor. A fotografia de Nicolas Karakatsanis também corrobora neste sentido e a edição de Tatiana S. Riegel imprime um ritmo delicioso. Por sinal, boa parte destes profissionais é tão desconhecida quanto o cineasta. Pelo jeito, não são só as atrizes que tomaram Hollywood de assalto.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

https://youtu.be/US_P75dgJ_w

::: FOTOS

::: FICHA TÉCNICA

Título original: I, Tonya
Direção: Craig Gillespie
Elenco: Margot Robbie, Sebastian Stan, Bojana Novakovic
Distribuição: California Filmes
Data de estreia: qui, 15/02/18
País: Estados Unidos
Gênero: biografia
Ano de produção: 2017
Classificação: a conferir

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN