CRÍTICA | ‘Homem-Aranha no Aranhaverso’ é uma celebração à diversidade
Yan Tibet
“O que te faz diferente é o que te transforma em Homem-Aranha”.
Talvez esta não seja a frase de efeito mais conhecida entre os fãs do Homem-Aranha, mas ela resume bem as múltiplas teias da história animada de Homem-Aranha no Aranhaverso (Spider-Man into the Spider-Verse). O novo Homem-Aranha é diferente, como você e eu.
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Miles Morales (Shameik Moore) é um jovem negro de 13 anos, criado no Brooklyn de Nova Iorque, descendente de pai afro-americano e mãe hispânica. Ao assumir os grandes poderes e responsabilidades confiados pelo Homem-Aranha “original”, ele torna-se o menino-aranha de seu universo, ao juntar-se com outras cinco versões do herói-aranha de outras dimensões paralelas do aranhaverso: o aranha-barrigudo Peter Parker (Jake Johnson), a mulher-aranha Spider-Gwen (Hailee Steinfeld), o aranha-cartoon Porco-Aranha (John Mullaney), o aranha-preto-e-branco Homem-Aranha Noir (Nicolas Cage) e a mangá-high-tech-aranha Peni Parker (Kimiko Glenn). Juntos, eles lutam contra um sem fim de inimigos do Homem-Aranha de todos os tempos para impedir que os planos do Rei do Crime (Liev Schreiber) destruam as múltiplas dimensões do espaço-tempo.
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O Homem-Aranha é um dos personagens mais populares do universo Marvel entre as diferentes gerações de fãs porque suscita forte identificação com as transformações típicas da adolescência, presente nas histórias em quadrinhos desde a década de 1960. Um jovem normal, que por debaixo da máscara anônima, tenta equilibrar as tarefas escolares com os problemas domésticos e as frustrações, expectativas e anseios da vida pessoal marcada pelo medo da rejeição social. Ele não é alguém tão distante de nossa realidade, afinal…
É impossível compreendermos o sucesso da narrativa transmídia do herói sem contextualizarmos a cultura dos fãs em que ele se desenvolve. No livro Convergence Culture, de 2006, o autor estadunidense Henry Jenkins nos indica três casos interessantes da cultura fandom que explicam um pouco do enorme sucesso do aracnídeo em todo o mundo.
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1) Num artigo no jornal inglês The Guardian, de 2002, o cineasta indiano Shakhar Kapur previu que, em uma década, provavelmente, o Homem-Aranha continuaria a ser um sucesso, mas quando tirasse a máscara, ele provavelmente seria chinês. E a cidade em que viveria talvez não fosse Nova Iorque, mas Xangai.
2) Numa experiência da Marvel Comics de 2002 com a série Mangaverso, reinventou-se o grupo de heróis, dentro das tradições japonesas do gênero, em que o Homem-Aranha é um ninja, os Vingadores se reúnem dentro de um enorme robô e o Hulk se transforma num monstro verde gigante.
3) Coincidindo com o lançamento do Homem-Aranha 2, em 2004, na Índia, a Marvel lançou a série de quadrinhos Spider-Man: India, numa “transcriação” em que Peter Parker se torna Pavitr Prabhakar, ao lutar contra um Duende Verde que é um demônio mitológico tradicional indiano, em que nosso herói salta sobre motonetas nas ruas de Bombaim.
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Talvez o novo Homem-Aranha não seja chinês, nem japonês, nem indiano, mas todas as opções anteriores. Adequado a todos os gostos, com múltiplas entradas de identificação, o amigão da vizinhança transita por diferentes culturas, nacionalidades e etnias. Como brinca um dos narradores do filme em um dos trailers, sua história já foi contada e recontada entre quadrinhos, filmes, jogos, desenhos animados, caixinhas de cereais, jingles de Natal… “e em um picolé-aranha não tão divertido assim”.
No Aranhaverso, assim como os “aranhas” das outras dimensões, Miles Morales tem superpoderes únicos que o Homem-Aranha “original” não tem. Entre cenas cômicas, o professor-aranha desastrado de outra dimensão em fim de carreira, o Peter Parker “imperfeito” tenta orientar Miles a como-se-tornar-um-aranha, mas suas aulas são um verdadeiro desastre. Para sua sorte, Miles conta ainda com o apoio de outros amigos-aranhas, e uma ajuda especial é oferecida por personagens femininas que ganham grande protagonismo no aranhaverso, como a Mulher-Aranha e a tia May. Vivendo relações familiares conflituosas, um contraponto à conexão problemática com o pai policial que o faz encarar as responsabilidades do cotidiano, o misterioso tio Aaron funciona como um mentor acolhedor com quem Miles se diverte e a quem ele recorre quando as coisas ficam difíceis.
A diversidade é o tom predominante da representação de heróis e vilões dessa história. Sem incorrer em spoilers, limitamo-nos em afirmar que há surpresas reveladoras nas características de gênero dos inimigos dos “aranhas”, especialmente num dos vilões cientistas-chave desta história. Na sua jornada de autodescoberta como novo herói-aranha de sua dimensão, o jovem Miles vive a insegurança de assumir as grandes responsabilidades que vêm com seus novos super poderes, negando-os até a hora derradeira em que a vida dos seus amigos corre sério risco. Este será o momento decisivo em que suas característica únicas farão a diferença em salvar a vida de todo o mundo (outra vez).
A direção tríplice de Bob Persichetti, Peter Ramsey e Rodney Rothman caprichou na realização de uma história recheada de piadas metalinguísticas que brincam com o diálogo entre a linguagem do cinema, da animação e dos quadrinhos. Numa série de crossovers, o roteiro de Phil Lord dedica-se com primazia a gags entre os personagens do Homem-Aranha Noir do passado, vindo da realidade sem cor da década de 1930, a Peni Parker dos mangás japoneses do futuro e sua companheira aranha tecnológica, e a divertida paródia do Spider-Ham (Porco-Aranha), diretamente dos cartoons, o Peter Porker: não, não é o mesmo “Porco-Aranha” do filme do Homer Simpson, haha! Note-se ainda que o longa não decepciona em manter a tradição de figuração do criador da série, Stan Lee (falecido em novembro de 2018), nos filmes recentes da Marvel: a aparição póstuma de Lee na história do Homem-Aranha no Aranhaverso é uma homenagem gentil e bem-humorada que vale a pena conferir na tela grande.
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A estética da animação computadorizada 3D é incrivelmente colorida, vibrante e recheada de referências visuais, que, muitas vezes, remete ao movimento pop art da década de 1960, cuja obra-ícone é a famosa reprodução seriada de um negativo colorido da Marilyn Monroe, de Andy Warhol. É incrível o quanto Homem-Aranha no Aranhaverso se encaixa perfeitamente com o que o autor italiano Umberto Eco assinala como o conceito da filme cult, em referência ao filme Casablanca, de 1942, em que cada espectador é requerido uma multiplicidade de repertórios culturais para plena apreciação da obra de arte. Um destaque especial para os fãs de quadrinhos que conhecem os prazeres de se folhear uma revistinha nova em mãos está na alusão direta dos diretores às listras transversais da composição plástica dos gibis e à textura das cores pigmentos dos quadrinhos (do padrão CMYK de impressão), como também o uso inteligente dos balões e onomatopeias típicos da linguagem das comic books, traduzidos para a telinha do cinema.
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“Você é como eu”. Ouvimos do Peter Parker “original” para o jovem Miles, em um dos trailers do filme. Ao valorizar a diferença entre as pessoas, aproximando-nos por nossas semelhanças, o filme é fiel à saga do personagem como um todo, ao nos deixar, no final, com um gostinho de esperança no peito.
Como justifica Miles, ao chegar atrasado na sala de aula, citando a Teoria da Relatividade de Einstein, inspiramo-nos em dizer que num mundo paralelo qualquer do multiverso, por debaixo de nossas máscaras cotidianas, qualquer um pode ser o novo Homem-Aranha: quem sabe não seja você?
Dica-aranha-sem-spoilers:
Nas cenas pós-créditos, há uma gag final com um meme da internet muito famoso, conectando as teias dos quadrinhos do passado com o do futuro, que revela uma dica preciosa para a continuação da série do aranhaverso… Então não levante da poltrona até que as luzes se acendam completamente. Ótimo aranha-filme!
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Spider-Man: Into the Spider-Verse
Direção: Bob Persichetti, Peter Ramsey, Rodney Rothman
Elenco (Vozes): Shameik Moore, Hailee Steinfeld, Mahershala Ali, Jake Johnson, Liev Schreiber, Brian Tyree Henry, Luna Lauren Velez, Lily Tomlin, Nicolas Cage, Kimiko Glenn, John Mulaney
Distribuição: Sony Pictures
Data de estreia: qui, 10/01/2019
País: Estados Unidos
Gênero: animação, aventura, fantasia, comédia, família, ficção científica
Ano de produção: 2018
Duração: 117 minutos
Classificação: Livre