CRÍTICA | ‘Jackie’ tem Natalie Portman brilhante e trilha sonora fascinante

Bruno Giacobbo

Diferentemente do Brasil, os Estados Unidos nunca foram uma monarquia. Eles só estiveram sob o jugo de um rei no período em que foram colônia da Grã-Bretanha. Esta diferença se deve ao fato de que a independência deles foi proclamada pela elite local, ricos senhores, mas membros do povo e sem títulos nobiliárquicos. Já a nossa foi basicamente fruto de um gesto intempestivo do herdeiro da Coroa Portuguesa. Por estas razões, talvez o norte-americano carregue no inconsciente a vontade de cultuar uma família real. Nos países onde existem até hoje, quando não estão mergulhadas em algum escândalo, elas são vistas como símbolos de uma grandeza inata. Assim, na ausência de uma realeza de fato e de direito, ao longo do século passado, a Família Kennedy, um dos clãs políticos mais poderosos de todos os tempos, acabou, aos poucos, de forma consciente, em um processo de retroalimentação, preenchendo este vazio através de histórias que traduzem perfeitamente esta grandeza sem abrir mão dos escândalos. Jackie (idem), o novo longa-metragem do cineasta chileno Pablo Larrain, mostra a derradeira entronização deste mito, um gesto tramado maquiavelicamente, no apagar das luzes, por uma rainha que acabara de perder seu rei.

Dotado de uma narrativa não linear, o filme retrata Jacqueline Lee Bouvier Kennedy Onassis (Natalie Portman) em três momentos de sua vida. No primeiro, recém investida da função de primeira-dama, ela recebe uma equipe de reportagem na Casa Branca, mostra as dependências desta e fala sobre as mudanças que está planejando para deixar o lugar acolhedor, com um jeito de lar. O segundo é logo após o assassinato do presidente John Kennedy (Caspar Phillipson). Susto, choro, sangue e horror pontuam estes instantes. Já o terceiro ocorre bem mais tarde, uma entrevista exclusiva onde fala do futuro de sua família e de suas preocupações mais imediatas. Tudo retratado com imensa naturalidade e dando vazão a sentimentos que transitam da felicidade de quem sabe que chegou ao ápice de toda uma vida a dor profunda de quem perdeu o seu esposo e se vê afastada das doçuras do poder. É no ínterim destes momentos terríveis que, gradativamente, ela se conscientiza da importância de construir um legado duradouro e mesmo sofrendo toma as medidas necessárias para que o povo não se esqueça do rei recém falecido. A tal entronização derradeira, uma vez que, como frisa Bobby Kennedy (Peter Sarsgaard) lá pelas tantas, o reinado foi bem mais curto do que o imaginado e carente de realizações.

Como o filme mira um período temporal restrito, não há espaço para as fofocas históricas. Os causos sobre o ciúme que Jackie sentia do envolvimento de John com a atriz Marilyn Monroe, as relações promíscuas com a máfia italiana, especialmente o “Sindicato de Chicago”, ficam a cargo do imaginário popular ou de obras-primas seminais como o livro “O Lado Negro de Camelot”,  escrito pelo jornalista Seymour Hersh. Para o cineasta e o roteirista Noah Oppenheim, a frieza da protagonista na hora de deixar a dor de lado e planejar o funeral presidencial era matéria prima mais do que suficiente para conceber está mistura azeitada de drama biográfico e thriller político. Thriller, sim, afinal, as cenas do assassinato de Kennedy não devem nada em tensão aos ótimos longas do gênero. No comando desta história, Larrain se saiu muitíssimo bem em sua estreia na indústria cinematográfica estadunidense. A experiência anterior com períodos e personagens históricos, vista em belos trabalhos como “No” (2012) e “Neruda” (2016), foi fundamental, mas ele contou com a ajuda valiosa do editor Sebastián Sepúlveda para que as três narrativas formassem uma só, fluida e interessante. Prestem atenção também nas cenas das filmagens dentro da Casa Branca. Elas parecem imagens reais de arquivo e são sensacionais.

No entanto, quis o destino que o ponto alto de Jackie, um filme sobre uma das mulheres mais fascinantes da História Contemporânea, uma autêntica rainha sem coroa, fosse o excelente trabalho de duas jovens: Natalie Portman e a compositora Mica Levi. Criticada pela forma como sua personagem fala (com um ovo na boca, segundo algumas pessoas), a atriz, de 35 anos, vai além da mera imitação. Sua Jackie é bastante parecida com a real (mais bonita, claro, culpa da genética da intérprete israelense), estilosa, dona de um magnetismo ímpar, doce perante as câmeras e decidida nos bastidores. Em resumo, uma belíssima  interpretação. Já a música britânica, aos 29 anos, é responsável pela segunda melhor trilha sonora desta temporada. Ela havia se destacado, antes, por “Sob a Pele” (2013). Aqui, repete a dose com uma obra onde o maior destaque não é uma composição sua, mas uma canção escolhida a dedo do musical “Camelot”, que fez muito sucesso na Broadway, nos anos 60, e passou a ser associado ao Governo Kennedy devido, entre outras coisas, a paixão do rei e da rainha por esta peça. Esta é uma história legitimamente norte-americana, mas não há problema nenhum em saudar e gritar: God Save The Queen.

Desliguem os celulares e excelente diversão.

TRAILER:

FICHA TÉCNICA: 
Título original: Jackie
Direção: Pablo Larraín
Elenco: Natalie Portman, Peter Sarsgaard, Greta Gerwig
Distribuição: Diamond Films
Data de estreia: qui, 02/02/17
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2016
Duração: 95 minutos
Classificação: 14 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN