CRÍTICA | ‘Kardec’
Julio Mantovani
Dirigido pelo brasileiro Wagner de Assis, Kardec acompanha a trajetória do Prof. Léon Rivail, mais conhecido pelo pseudônimo Allan Kardec, em sua missão de escrever o O Livro dos Espíritos. A tarefa do educador não é nada fácil. Além de ter que lidar com a perseguição da Igreja Católica, ele irá desafiar seus pares no mundo acadêmico e incomodar muita gente com o conteúdo de sua obra.
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A princípio, a França do século XIX parece uma realidade distante da nossa. Ainda assim, o conteúdo da trama é surpreendentemente atual nas questões que aborda. Opiniões políticas à parte, é interessante observar as semelhanças da sociedade em que vivemos com a que é retratada no filme. O Brasil dos dias de hoje vive o seu primeiro governo conservador em quase duas décadas. A pátria do nosso herói vem de uma sucessão de revoluções e se encontra sob o governo do Imperador Napoleão Bonaparte, que é apoiado pelo Santo Ofício. Embora esse não seja o foco da narrativa, Kardec não deixa de mostrar conflitos característicos de um momento histórico de transição.
Aliás, a utilização do termo “herói” é especialmente adequada para descrever o protagonista de Kardec. Apesar de fugir do estereótipo do herói mitológico por ser um intelectual casado de meia idade, a disposição de Leon, interpretado por Leonardo Medeiros, para “abalar o mundo” é notável. Ainda que relutante no começo, não há nenhuma dúvida de que ele irá aceitar o desafio para o qual é escolhido pelos espíritos e cumpri-lo da melhor maneira possível. Na verdade, a narrativa pega emprestada a estrutura do monomito e a aplica sem grandes modificações. O resultado é um trabalho de natureza quase mitológica.
De certa forma, pode-se dizer que um dos defeitos do filme está justamente em sua linearidade. Não é muito difícil antecipar o que vai acontecer a seguir e os conflitos internos do protagonista se concentram sob a sua fé, sendo resolvidos logo nas primeiras cenas. Também não há uma grande oscilação emocional. O diálogo inicial é intenso, talvez um pouco intenso demais para o contexto no qual se apresenta, e se mantém no mesmo tom até o final. A atuação de Leonardo Medeiros também não varia muito, tornando seu personagem ligeiramente estático. Em parte, isso parece ser uma decisão deliberada do roteirista, já que a esposa de Kardec, Gabrielle (Sandra Corveloni) é quem reflete o lado emotivo do marido. Através das falas dela, tomamos conhecimento dos pensamentos do professor que ele não expressa, por ser um homem da razão e se apresentar como tal.
É importante ressaltar que esse é um filme de caráter religioso, que evita lançar sombras na imagem de Allan Kardec ou na doutrina espírita. Por isso, os aspectos negativos que, em geral, humanizam um personagem são quase inexistentes no protagonista. Até os momentos em que há uma tentativa no roteiro de ressaltar que ele era um homem de carne e osso, como todos os outros de sua época, são tratados com um certo decoro que pode parecer um pouco exagerado para alguns espectadores. Na prática, Kardec é trabalhado por uma perspectiva e se atém a ela, sem abrir muito espaço para o discurso dos antagonistas, que é um tanto quanto raso.
Uma vez tratada destas questões, é necessário parabenizar o diretor pela fotografia maravilhosa que está presente em todas as cenas. A sensação que se tem ao assistir ao longa é a de estar diante de um quadro em movimento. A paleta de cores utilizadas é essencial para a criação desse efeito. Inicialmente, somos apresentados a uma grande variedade de marrons que, aos poucos, dão lugar a uma iluminação amarelada que remete a uma atmosfera nostálgica. Nas cenas em que o protagonista se encontra diante da miséria humana, a noite ganha um brilho frio e esverdeado. Cada cor é muito bem pensada, compondo um verdadeiro espetáculo. O filme aproveita ao máximo o cenário histórico, permitindo uma viagem no tempo que é embalada pela trilha sonora, muito bem escolhida. Com direito a planos panorâmicos altamente detalhados, somos convidados a passear pela França e conhecer seus pontos turísticos mais importantes.
Em Kardec, também se destaca a atuação do elenco feminino e infantil. Todas elas foram muito bem sucedidas em criar personagens interessantes. As médiuns que aparecem ao longo do filme são notáveis, despertam no público a vontade de conhecer mais suas histórias individuais. Todas elas possuem em si um certo mistério, o que é muito adequado ao papel. Já as crianças se destacam por contar as próprias histórias, muitas vezes sem nenhuma fala. Apenas olhando para os atores mirins, sabemos quem eles são e conseguimos identificá-los na vida real, relacionando-os a figuras que conhecemos no nosso cotidiano e nas nossas memórias.
De forma geral, Kardec é um filme satisfatório que pode agradar mesmo quem não é adepto do espiritismo, desde que não tenha uma aversão ao mesmo. Ele passa uma mensagem de esperança, que culminam no fato de que mesmo o que pode parecer uma derrota definitiva, pode ter consequências positivas no futuro. É um drama leve, positivista, sem grandes acontecimentos e reviravoltas bombásticas, mas muito bonito de se ver. Não é uma obra para quem gosta de cenas de ação ou narrativas carregadas de tensão. Por outro lado, tem tudo o que é necessário para agradar quem gosta de uma pegada mais artística ou histórica.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Kardec
Direção: Wagner de Assis
Elenco: Leonardo Medeiros, Sandra Corveloni, Genézio de Barros
Distribuição: Sony
Data de estreia: qui, 16/05/19
País: Brasil
Gênero: biografia
Ano de produção: 2018
Duração: 110 minutos
Classificação: 12 anos