CRÍTICA | ‘Lion: Uma Jornada para Casa’ é a busca por si mesmo, com sensibilidade e humanidade

Tem Um Tigre no Cinema

A insensibilidade não é nada fora da nossa realidade e ela se manifesta naqueles que se tornam invisível seja pela correria da vida moderna ou pela nossa própria decisão de fingir não os ver. Lion: Uma Jornada para Casa, além da óbvia mensagem de superação, é também uma voz dessas crianças que, por um motivo outro, ficaram à margem da sociedade. Mesmo que possamos ver o diretor puxando seus fios e de certa maneira manipulando a audiência não há nada de errado nisso, pois Davis nos leva a um caminho que podemos até não querer, mas que durante duas horas seremos obrigados a encarar.

É fácil nos afeiçoarmos pelo jovem Saroo (Pawar). Ainda sem saber a origem de seu nome, o jovem é, antes de tudo, um guerreiro. Pela mãe, pelo irmão mais velho e pela irmãzinha ele se mostra corajoso ao pular de um trem em movimento e forte ao levantar uma bicicleta para se mostrar digno de trabalho a Guddu (Bharate). Ao mesmo tempo ele ainda é uma criança que sofre ao ficar à margem da sociedade, sendo obrigado a aceitar trabalhos pesados e caçar sobras nos trens indianos e, no fim de um dia exaustivo, grita de desespero pelo irmão num som abafado pela indiferença do trem que o leva para longe de casa.

Davis mostra a longa distância que Saroo viajou por meio de legendas na cena para reforçar quão perdido o garoto está. Porém o efeito seria mais bem explorado sem essas informações – isso funcionaria principalmente para a audiência ocidental e pouco familiarizada com as distâncias continentais de um país como a Índia e estaríamos tão perdidos quanto o jovem. Além de não sabermos bengali – ou hindi – o olhar perdido de Saroo, reforçado pela câmera constantemente no nível dos olhos dele, observando apenas a cintura das pessoas, o desespero seria mais tátil. Não é uma opção errada, mas seria uma mais forte para a narrativa.

Como tantos outros na mesma situação Saroo, tão longe de casa a ponto de não entender a língua, amadurece antes do tempo. Nessa parte da história, onde o jovem não fala a língua de onde está e tem que se comunicar pelo olhar, é que ele vive o pior de ter se tornado alguém invisível, a não ser para os outros invisíveis como ele. Adultos não ligam para os clamores da criança e a lei, representada por um solitário policial (ou segurança), não se importa dele estar sendo perseguido por um adulto numa estação em Calcutá – ou pior, é conivente com isso – é o reflexo de uma situação ainda pior, algo que o filme apenas dá um vislumbre de algo que parece ser muito pior.

Só por essa abordagem de um retrato que pouco conhecemos num país tão distante, a produção já valeria. Ao mesmo tempo é impossível não olharmos para a nossa situação – nisso me refiro ao nosso país e outros – e fazer paralelos da nossa própria sociedade brasileira. Quantas vezes preferimos ignorar, olhar para o outro lado ou fingir que pessoas são invisíveis, não trocando um olhar, respondendo nem que seja com uma negativa um pedido de ajuda? Afinal de contas, não é tão difícil chegar à conclusão que somos bem parecidos ainda que a distância seja maior que um oceano inteiro.

Passando por momentos cada vez mais difíceis e percebendo que o reencontro com a mãe ficava cada vez mais improvável, pois ele vai cada vez mais longe, o já adulto e agora privilegiado Saroo (Patel) renasce como filho de Sue (Kidman) e John (Wenham). Essa é o momento mais simbólico da trama e não à toa presenciamos esse renascimento com Saroo saindo das águas. De certa maneira, esse segundo ato é uma adolescência tardia do rapaz que é trazido de volta às lembranças de casa de maneira sensorial – pela comida indiana – e então se revolta com um tanto de brutalidade, seja aos pais adotivos ou à namorada, Lucy (Mara).

Essa é a parte problemática, quase burocrática, da produção. O diretor estende o foco nas pesquisas que Saroo faz no Google Earth – e nisso a empresa usa o filme como maneira de monetizar, mas nem tanto quanto em Os Estagiários (The Internship, 2013, Shawn Levy) –, o que alonga muito esse ato, sem desenvolver a relação do protagonista com a família e a namorada. Principalmente com Lucy podemos perceber esse problema na montagem. Se anteriormente entendíamos bem a passagem de tempo das escolhas de Saroo ainda jovem, nessa parte fica impossível saber quando Lucy e ele começaram a se relacionar e como ele lidava com o irmão adotivo, Mantosh (Ladwa). Inclusive a mãe deles diz que Saroo gostava de protegê-lo, mas isso nunca é abordado em tela.

Lion: Uma Jornada para Casa é a busca por si mesmo, em vários sentidos. Mesmo que peque por desenvolver pouco a relação interpessoal dos personagens e cair num clichê romântico piegas – que não dura muito também – é importante pela mensagem social, tem uma montagem boa que mistura realidade com sonhos para representar tanto o que Saroo passava quanto criança e como isso influenciou enquanto um jovem adulto. É praticamente impossível chegar ao final da história sem estar torcendo pelo desfecho feliz e sem aquele nó na garganta de expectativa, o que mostra que Davis soube colocar a sensibilidade da audiência para fora, resgatando uma humanidade que pode estar longe, mas não perdida para sempre.

*Texto publicado originalmente no site “Um Tigre no Cinema”, parceiro do BLAH CULTURAL

TRAILER:

FICHA TÉCNICA:

Título original: Lion
Direção: Garth Davis
Roteiro: Luke Davies, Saroo Brierley
Elenco: Rooney Mara, Nicole Kidman, Dev Patel

Distribuição: Diamond Films

Data de estreia: qui, 16/02/17
País: Estados Unidos, Austrália, Reino Unido
Gênero: drama
Ano de produção: 2015
Duração: 129 minutos

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NAN