Divulgação.

CRÍTICA | ‘O Beijo no Asfalto’ marca o nascimento de um cineasta promissor e autoral

Bruno Giacobbo

A chamada teatralização dos filmes, obras cinematográficas que utilizam, às vezes, apenas um cenário e dão ênfase às interpretações, divide opiniões. Há quem não goste por achar que a Sétima Arte tem muito mais recursos a serem explorados e que, nestes casos, acabam sendo completamente negligenciados. Amante das duas artes, gosto bastante quando elas se fundem na telona. E esta fusão faz ainda mais sentido quando a matéria prima do roteiro é uma peça. Obra fundamental do dramaturgo Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto teve duas adaptações, em 1964 e em 1980, pelas mãos de Flávio Tambellini e Bruno Barreto. São ótimos longas, mas trabalhos comuns se pensarmos estritamente em como tudo foi feito. Arandir, Selminha, Dália, o delegado Cunha, o jornalista, um por um, os personagens vão desfilando, frame a frame, numa mera reprodução do que foi imaginado pelo autor.

Quase 40 anos depois, agora pelas mãos do ator Murilo Benício, que faz sua estreia dirigindo e roteirizando para o cinema, o drama rodrigueano ganha uma nova versão cinematográfica que, comparativamente, está bem mais para “Salomé” (2013), de Al Pacino, do que para uma simples teatralização de um filme. Logo no começo, vemos uma mesa redonda. Sentados em volta dela, um grupo de atores. Entre eles, Lázaro Ramos, Débora Falabella, Fernanda Montenegro, Stenio Garcia e Otávio Muller, entre outros. Juntos e com a orientação do teatrólogo Amir Haddad, em uma participação especial, iniciam a leitura da peça. São interpretes experientes, conhecem o texto, Fernandona, então, quando era nova viveu a protagonista Selminha, entretanto, todos, sem exceção alguma, tratam o que está sendo lido com reverência. Ao fundo, só observando e sem se intrometer, está o diretor.

A primeira cena onde enxergaremos os atores vestidos a caráter e, de fato, interpretando, demora um pouquinho a acontecer. Só que a história já está sendo contada. A leitura e a forma como gente do quilate de Augusto Madeira dão vida àquelas palavras, mesmo que sentado e vestindo uma camiseta dos nossos tempos, são suficientemente fortes para fazer o público imaginar o alvoroço causado por um beijo, entre dois homens, em plena Praça da Bandeira, após um dia de trabalho, em 1960. Se o filme continuasse apenas assim, eu me arriscaria a dizer que funcionaria do mesmo jeito. Acontece que eram necessárias as cenas, as tais cenas ensaiadas e empostadas. O grande público não perdoaria se elas não estivessem ali. Desta mudança advém uma qualidade enfatizada pela edição de Pablo Ribeiro: tudo acontece com fluidez. A passagem da leitura para a encenação quase não é notada.

Mesmo filmando tomadas que tinham o intuito de agradar os espectadores que não curtem sair de sua zona de conforto, o cineasta faz questão, o tempo todo, de nos lembrar da essência de seu primeiro longa-metragem. Quando a câmera se move da sala de visitas da casa de Arandir e Selminha para a cozinha, ela expõe as entranhas daquele lugar e estas revelam que tudo não passa de cenário. Com a exceção da tomada que leva ao beijo, não há locações. Um grande cenário foi construído no centro do palco de um teatro. Em seguida, uma panorâmica aérea, estrategicamente pensada, desnuda ainda mais este ambiente de ripas de madeira construído pelo diretor de arte Tiago Marques Teixeira. A fotografia de Walter Carvalho, em tons de prata e cinza, também tem um propósito claro: fixar a trama na época em que foi escrita. Hoje, o tal beijo não venderia jornal e Amado Ribeiro estaria desempregado.

Cenário montado no palco de um teatro / Divulgação.

Da concepção à realização, todo o mise en scene orquestrado por Murilo Benício é belíssimo. O ator de comédia, como era rotulado pejorativamente, primeiro, provou sua capacidade atuando em dramas como “O Animal Cordial” (2018) e, agora, ensaia seu movimento mais ousado revelando-se um cineasta com vocação autoral. Ter selecionado um elenco para lá de jubiloso, temos em O Beijo no Asfalto algumas das melhores interpretações do cinema brasileiro em 2018, destaque para Lázaro Ramos, Stenio Garcia, Otávio Muller e para a debutante Luiza Tiso, ajudou, mas não dá para negar o seu mérito. Guardadas as devidas proporções, é uma estreia equivalente a do galã Bradley Cooper, em “Nasce Uma Estrela” (2018). Ambos souberam injetar frescor em um clássico. Ao deixarmos o cinema, fica na retina e nos tímpanos a sensação de quero mais e o desejo de assistirmos ao seu próximo filme.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: O Beijo no Asfalto
Direção: O Beijo no Asfalto
Elenco: Lázaro Ramos, Débora Falabella, Fernanda Montenegro, Stenio Garcia, Otávio Muller, Luiza Tiso
Distribuição: ArtHouse
Data de estreia: qui, 06/12/2018
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2017
Duração: 98 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN