CRÍTICA | ‘O Doutrinador’ é um “cidadão de bem” armado e perigoso
Bruno Giacobbo
O cenário poderia ser Brasília, Rio de Janeiro ou São Paulo, mas a cidade em questão não é citada. Nem mesmo o país. Sabemos que é o Brasil. A faixa presidencial que vemos lá pelas tantas, o caos que toma conta de um hospital público qualquer ou as manifestações de junho de 2013, ali, materializadas na nossa frente, são denotadores de onde a história se passa. E, no meio desta confusão toda, uma menina morre por falta de atendimento. Choro, convulsão, dor e sofrimento. Quantas vezes já não vimos isto? É só ligar no telejornal local ou abrir as páginas de um periódico ao alcance das nossas mãos. Acontece que o pai desta criança não é um cidadão comum. Miguel (Kiko Pissolato) é um policial de elite, integrante da Divisão Armada Especial (DAE), uma tropa avançada da Polícia Civil. E ele não culpa a bala perdida que atingiu sua filha. A violência e os hospitais sucateados possuem a mesma progenitora: a corrupção que assola a nação e fustiga o povo. Logo, os culpados são os políticos.
Adaptação da HQ de Luciano Cunha, que teve suas primeiras tiras publicadas na internet antes de ganhar edições encadernadas, O Doutrinador mostra como Miguel se tornou um justiceiro mascarado e saiu matando políticos vigaristas. Apesar de ser uma história de ficção, associações diversas com a nossa triste realidade podem ser feitas. É quase impossível não lembrar de Sérgio Cabral, ex-governador fluminense, quando somos apresentados ao também governador Sandro Correa (Eduardo Du Moscovis, um especialista em dar vida a tipos assim). Acusado de comandar um esquema de desvio de verbas da saúde, ele está no olho do furação. É atrás dele e de seus comparsas que o protagonista vai. Olho por olho, dente por dente, como ensina a Lei de Talião, já que a lei de fato parece ineficaz. E neste mar de lama, há um prefeito que é a cara do falecido Celso Pitta e há ainda a empoderada Marta Regina (Marília Gabriela), ministra do STF que, de certa forma, parece uma versão feminina de Gilmar Mendes.
E não é apenas omitindo nomes de locais ou inventando políticos (nos HQs, os perseguidos são gente do naipe de Dilma Roussef e Renan Calheiros) que o longa-metragem pretende se descolar da realidade. Com uma elegância visual inquestionável, uma estética cartunesca estampa todos os frames, dando uma aura imaterial e de fantasia à cidade em que a ação de se desenrola. A sensação é de que, a qualquer instante, o Batman ou o Justiceiro, personagens que inspiraram Cunha na criação do seu mascarado, vão dobrar a esquina. Esta linda estética, que comprova a nossa capacidade em produzir cinema de gênero, mesmo com pouca expertise ou orçamentos que ainda deixam a desejar, é fruto de um trabalho interdisciplinar entre o diretor de fotografia Rodrigo Carvalho e a diretora de arte Margherita Pennacchi. E se os quadrinhos são a origem deste aspecto positivo da obra, em contrapartida, é por aparente fidelidade a estes que o roteiro apresenta determinados problemas.
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Para adaptar uma história em quadrinhos não basta apenas filmar quadro a quadro e reproduzi-los na telona. Com todo o respeito, o roteiro de uma HQ é muito mais simplista (e simplicidade não é sinônimo de superficialidade) do que o equivalente de um longa. Assim, ao transpor esta aventura para os cinemas, o plot, originalmente bastante simples, deveria ter sido desenvolvido e trabalhado de forma que gerasse uma trama mais densa e que não soasse superficial. E ainda que o texto final leve a assinatura de sete roteiristas (sim, vocês leram certo), isto não ocorreu. Além disto, há uma série de pequenos furos que poderiam perfeitamente ter sido evitados com um pouco mais de esmero. Já ouviram falar em uma hacker de respeito que deixa informações vitais no seu celular, ao alcance das autoridades? Reparem também no momento em que Miguel tem o insight de usar uma máscara (ali nasce O Doutrinador). Eu juro que fiquei me perguntado insistentemente: “De onde veio isto? Quem jogou?”
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Uma das grandes preocupações que eu tinha em relação ao longa era quanto a ação, as cenas de tiroteio e, como já suspeitava, as possíveis explosões que poderiam acontecer. São nestes instantes que um orçamento vultuoso faz falta e que uma indústria cinematográfica emergente não se compara à Hollywood. Só que, para o meu imenso alívio, os diretores Gustavo Bonafé e Fabio Mendonça, com o suporte vital de uma competente equipe de efeitos visuais/especiais, conseguiram tirar tudo de letra. Especialmente falando, há uma tomada, no último ato, que me fez arregalar os olhos. Quando as labaredas subiram, me regozijei por causa do que estava vendo e pelo significado da cena em si. Acredito que muita gente vai sentir a mesma coisa que senti naquele momento. Em relação a ação, é preciso destacar o comprometimento de Kiko Pissolato na composição de seu personagem. O ator praticou, por aproximadamente seis meses, parkour e dispensou o dublê em quase todas as cenas.
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Talvez a mensagem seja a coisa mais importante de O Doutrinador. No finalzinho de tudo, uma narração em off na voz da hacker Nina (Tainá Medina, uma espécie de Lisbeth Salander dos trópicos) faz um apanhado de impressões e sensações. Em tempos de eleição presidencial acirrada, com irmãos e amigos de longa data se ofendendo por besteira, é ela que dá o tom do que estamos vivendo e fala aquilo que está óbvio diante dos nossos olhos: Miguel não é o herói desta história. Ele é somente um cara qualquer que, cansado, exaurido e sem nenhuma ponta de esperança, decidiu fazer justiça com as próprias mãos. Apesar das inspirações iniciais, o tipo que ele encarna está muito mais para o protagonista de “V de Vingança” (2005) do que para o Cavalheiro das Trevas. O herói, na verdade, é o agente policial Edu (Samuel de Assis), este sim alguém que a acredita que a justiça se faz dentro das leis, pois estas existem para nos proteger dos malfeitores em geral, inclusive, dos corruptos.
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EM TEMPO: Não saiam da sala antes do fim dos créditos. Há uma cena.
Desliguem os celulares e muito boa diversão.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: O Doutrinador
Direção: Gustavo Bonafé
Elenco: Kiko Pissolato, Samuel de Assis, Tainá Medina
Distribuição: Downtown/Paris
Data de estreia: qui, 01/11/18
País: Brasil
Gênero: ação
Ano de produção: 2018
Classificação: 16 anos