CRÍTICA | ‘O Filme da Minha Vida’ desponta como uma aposta confiável de possível candidato nacional ao Oscar 2018
Bruno Giacobbo
Logo nos primeiros minutos da projeção, o personagem principal, Tony Terranova (Johnny Massaro), revela: “Meu pai nunca viu um filme por inteiro. Ele dizia que o importante era assistir ao início, para saber sobre o que falava a história, e ao final, uma vez que os finais são sempre bonitos”. Mais tarde, alguém confessa que não gosta de ir ao cinema por que “este é um troço escuro, onde você fica lá dentro vendo a vida dos outros em vez de cuidar da sua e perde duas preciosas horas do seu dia”. Talvez as palavras sejam levemente diferentes e se forem, peço desculpas. No entanto, concentrem-se na mensagem, pois é esta que realmente importa. Inicialmente, estes pensamentos podem parecer um convite para o público se levantar e ir embora. Eles estão falando mal do ritual de ir ao cinema. O que vocês, meus caros espectadores, ainda estão fazendo aí, sentados? Só que o pai do protagonista, Nicolas (Vincent Cassel), não sabia que ver uma película pulando o que acontece no meio da trama é o mesmo que tentar viver sem sofrer. É como nascer e morrer sem enfrentar os diversos reveses que tornam nossas conquistas cotidianas especiais. Às vezes, nos esquecemos desta lição e, para que isto não ocorra de novo, precisamos olhar para a vida dos outros do modo como sentamos no escuro e olhamos para a telona; ou relembrá-la na marra mesmo.
Baseado no romance “Um Pai de Cinema”, do escritor Antonio Skármeta, O Filme da Minha Vida é a história de um relacionamento amoroso, mas não entre um homem e uma mulher. A relação em questão, aqui, é paternal, envolve Nicolas e Tony, mais precisamente, as lembranças que o segundo tem do primeiro. No dia em que voltou para casa, em Remanso, no interior do Rio Grande do Sul, após uma temporada de estudos na capital, o filho encontrou o pai na estação de trem, deu um abraçou e o viu partir para a sua pátria, a França. Deste momento em diante, o jovem, de apenas 20 anos, começou a ter uma existência incompleta, com um buraco incapaz de ser preenchido. Ele mora com a mãe Sofia (Ondina Clais), dá aulas (curiosamente) de francês em uma escola municipal e sofre de uma insônia descomunal. Nas horas vagas, conversa com Paco (Selton Mello), um velho amigo dos seus pais e, aparentemente, único laço tangível com o passado que, hoje, vive a relembrar. Na busca pela felicidade, que, claudicante, tropeça no tal buraco aberto pela ausência paterna, apenas duas coisas fazem o protagonista sonhar: histórias de cinema e as Irmãs Madeira. Só que ambas parecem distantes.
Quando digo distantes, não me refiro a algo como a distância entre Antofagasta, no Chile, terra do autor do romance, e Passos, Minas Gerais, berço do diretor e roteirista (junto com Marcelo Vindicatto) Selton Mello. Na verdade, as distâncias nesta trama são delimitadas por uma ferrovia e a timidez de um homem inexperiente. A sala de projeção mais perto fica no município vizinho de Fronteira. É pelo rádio que Tony toma conhecimento dos filmes que estão em cartaz e fica com vontade de assisti-los. E não é sempre que ele pode ir, é preciso planejamento ou, quem sabe, um bom pretexto. Já as irmãs estão mais próximas do alcance dos seus sonhos, uma vez que moram no mesmíssimo lugar. O problema é que ele não consegue saber de qual gosta mais. Luna (Bruna Linzmeyer) nunca deixou a região, é doce, sonhadora e linda. Petra (Bia Arantes) ganhou um concurso de miss, viajou por aí, é esperta e igualmente bela. Aliás, são belezas distintas: uma ingênua, a outra curtida. Embarcar no trem, ir ao cinema e descobrir por quem o coração bate, são banalidades essenciais na jornada rumo ao amadurecimento e a reconciliação com o passado e as lembranças de seu pai.
Uma das melhores coisas do filme é o trabalho de reconstituição de época. A cidade de Remanso não existe. Ela é fictícia, fruto das reminiscências de infância de Skármeta e do diretor. Não lembro se, em algum momento, é dito o ano da história, mas o longa que está em exibição é “Rio Vermelho”, de 1948, dirigido por Howard Hawks e estrelado por John Wayne. Logo, dá para imaginar que tudo acontece lá pela década de 50, talvez 60, uma vez que as películas norte-americanas demoravam bastante para chegar aos rincões brasileiros. Com a valiosa colaboração da direção de arte a cargo de Monica Delfino e René Padilha; e da cenografia de Cláudio Amaral Peixoto, somos transportados para um Brasil que a maioria de nós só conhece de ouvir falar: rural, pacato, onde os ponteiros do relógio parecem andar vagarosamente, pois não há a urgência e o frenesi dos nossos tempos. Em uma cena, a televisão é tratada quase como um objeto extraterrestre. Ao fundo, o rádio transmite uma luta de Éder Jofre, o Galo de Ouro, campeão mundial de boxe. O contraste é tão perfeito quanto a fotografia de Walter Carvalho, que se alterna entre planos abertos e fechados, ainda que haja a predominância dos primeiros, e confere um ar de clássico à obra devido a sua textura e a escolha de cores.
Por falar em clássico, durante a sessão inteira, fiquei com a sensação de estar assistindo à um derivado direto do cinema italiano que foi feito entre 1950 e 1970. Não falo especificamente de uma determinada corrente, como o neorrealismo ou o decadentismo, mas, de uma maneira geral, da produção daquele período. Não sei se o diretor brasileiro quis, intencionalmente, prestar um tributo, porém, as semelhanças são claras. Elas estão lá, em aspectos amplos como a estética campesina, os dramas familiares e amorosos; ou nas atuações de Bruna e Bia. Com uma mistura de ingenuidade, esperteza e beleza, elas evocam as duas Claudias, Cardinale e Marsani, do mestre Luchino Visconti. E esta comparação não pode ser invalidada pelo simples fato de algumas canções da trilha sonora, dos Terranova ou de Cassel serem franceses, uma vez que diversos trabalhos da época eram produções franco-italianas. Já que citei quase todos os atores principais, o elenco escalado merece um elogio à parte. Tanto os citados, como Massaro, estão muito bem, capazes de emocionar o público com interpretações seguras e pautadas por um texto repleto de diálogos irônicos e engraçados.
Terceiro longa-metragem dirigido por Selton Mello, temos aqui um indício claro de que um grande ator pode se transformar em um grande cineasta. Ele ainda não conquistou este epíteto, mas, tanto pelas inúmeras decisões que tomou ao longo do processo de realização e das filmagens, como pelo produto final em si, está no caminho certo. Entre as escolhas que sustentam tal crença está a utilização de uma frase de “Rio Vermelho” para sublinhar e ressaltar algo que está prestes a acontecer em seu próprio filme. O perfeito encaixe entre o som de uma obra e a imagem de outra é o de resultado de uma delicada sensibilidade artística e em um ano onde, até agora, ninguém conquistou, simultaneamente, a simpatia do público e da crítica especializada, O Filme da Minha Vida desponta como uma aposta confiável de possível candidato nacional ao Oscar 2018. Se escolhido, será a segunda vez que o novo diretor entrará na rota da estatueta dourada (A primeira foi com “O Palhaço”, em 2012) e nos poupará de um interminável, infrutífero e chatíssimo debate político, igual ao ocorrido ano passado por causa da escolha de “Pequeno Segredo” em detrimento de “Aquarius”. O cinema pode, sim, ser uma ferramenta problematizadora da nossa sociedade, contudo, isto não é um dogma infalível para ditar cegamente a feitura de todos os filmes.
Desliguem os celulares e excepcional diversão.
TRAILER:
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FICHA TÉCNICA:
Distribuição: Vitrine Filmes
Direção: Selton Mello
Elenco: Vincent Cassel, Johnny Massaro, Bruna Linzmeyer
Data de estreia: qui, 03/08/17
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2016
Classificação: 14 anos