CRÍTICA | ‘O Menino que Descobriu o Vento’

Lohan Lage Pignone

Atenção: a crítica abaixo contém spoilers.

Não é simplesmente mais um filme de superação. É um filme de resiliência.

O Menino que Descobriu o Vento (The Boy Who Harnessed the Wind), dirigido pelo ator Chiwetel Ejiofor (“12 anos de Escravidão”), que também atua no filme, desponta como o longa-metragem do momento neste primeiro trimestre de 2019. E não é por menos. O mérito do longa, que conta a história real de um menino de 13 anos que construiu moinho de vento e salvou toda sua aldeia da fome, a princípio, advém de um aparente subgênero “de superação”, que, na maior parte das vezes, conquista o grande público, sobretudo quando se acrescenta o “baseado em uma história real”. Outra razão que não se pode fazer vista grossa é o fato de a produção ter sido disponibilizada na maior plataforma de streaming do planeta, a Netflix, além de já ter sido exibida no Festival de Berlim, numa sessão especial, em fevereiro.

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Quando digo “aparente”, me refiro à impressão de que não se trata apenas de um filme redondo de superação, como a crítica tende a encaixotar a obra; a trama me permitiu enxergar além dessas fronteiras, e um dos pontos-chave do filme é a resiliência. Podemos associar a resiliência à superação, sim, mas não abrangê-los sob a perspectiva sinônima.

A resiliência é a força motriz que conduz à superação, ao ato culminante do filme. A resiliência é a linha narrativa que conecta todas as subtramas, como a do amor embarreirado de Annie, ou a dos fatores políticos que embasam maior parte dos acontecimentos de O Menino que Descobriu o Vento.

Foto: Netflix / Divulgação

William (Maxwell Simba), o personagem central, é um menino sonhador, habilidoso, e, acima de tudo, resiliente. Diante de todo e qualquer percalço, William se readapta ao “jogo”, encontrando brechas para que possa restabelecer suas convicções. Uma cena simbólica, aliás, é quando ele se vê em meio a uma multidão faminta próxima a um galpão em que o governo decidiu vender alimentos com preços inflacionados. Montado em sua bicicleta, William consegue se desvencilhar, fugir da vista dos guardas e se depara com uma fresta em um dos tapumes do galpão. Essa fresta, pela qual, a princípio, ele não consegue penetrar, ganha importância mais à frente, pois ela se torna a sua saída do galpão.

Dizem que brasileiro sempre dá um “jeitinho”. William Kamkwamba é malaui, mas não foge a esse estigma. Sua insistência para com os estudos, por exemplo, é outra prova de sua força resiliente. Mesmo afastado do ambiente escolar, devido à falta de pagamento, ele se vale de artifícios que o colocam novamente “no jogo”. A prevalência de sua convicção supera até mesmo a crença espiritual. O que era causa nobre e suprema dos ancestrais, agora dá lugar ao discurso científico. Em dado momento do filme, Trywell (Ejiofor), o pai, tem a oração interrompida por Agnes (Aissa Maiga), a mãe. Cena muito simbólica, aliás, pois além de demonstrar a descrença no divino (o pão não vai cair do céu), representa a figura paterna desbancada pela materna. A presença da mulher no longa, aliás, recebe grande relevância, sobretudo no papel da conciliação e na representatividade do novo, do open mind. Agnes é o contraponto de Trywell. É mais inventiva e acredita piamente no poder da educação. Logo no começo da trama, ela deixa isso claro, orgulhosa, de que William puxou mais à sua família do que a do pai. Trywell, embora reconheça o poder da educação e apoie os filhos nesse sentido, é um homem mais enraizado às tradições. A obra equilibra bem essas questões, evitando rotular posicionamentos certos e errados. Permite que o espectador tire suas próprias conclusões e compreenda as razões das ações desses personagens.

Foto: Netflix / Divulgação

O que une o moderno ao antigo em O Menino que Descobriu o Vento é a educação. Não importa a temporalidade; a educação será a base de todo e qualquer avanço. Ela dá sustância e embasamento à postura resiliente de William, que reconhece isso em um diálogo com o pai, ao expressar que toda sua ideia havia nascido após sua ida à escola. “Vá para a escola”, é a frase final dita no filme. É através da escola que ganhamos força para combater, inclusive, a corrupção política. A honestidade se engendra com boa educação.

O longa dá um gancho certeiro para que possamos refletir o quanto ainda retroalimentamos um olhar etnocêntrico, afastado das mazelas que milhões de seres humanos sofrem na África, por exemplo. Aliás, o continente sempre será referência sob esse aspecto, não? Uma região devastada pela fome, pelas doenças… devastada pela ganância de quem vive do lado de cá, os imperialistas.

Foto: Netflix / Divulgação

A paixão com que Ejiofor dirigiu esse filme é evidente em cada frame, em cada diálogo que transborda emoção. O elenco reforça muito essa paixão, há uma entrega genuína dos atores. O Menino que Descobriu o Vento nos leva, acima de tudo, a redescobrir o quanto podemos ser resilientes em nossas convicções e o quanto devemos ser sensíveis às dores do mundo, mesmo que a trocentos mil quilômetros de distância. Porque, como o próprio longa ensina, “Deus é como vento que a tudo toca”. Que os bons ventos nos toquem assim como esta ótima produção toca o espectador.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: The Boy Who Harnessed the Wind
Direção: Chiwetel Ejiofor
Roteiro: Bryan Mealer, William Kamkwamba
Elenco: Chiwetel Ejiofor, Maxwell Simba, Aissa Maiga
Ano de produção: 2019
Duração: 113 minutos
Gênero: Drama
País: Reino Unido, Irlanda do Norte
Distribuição: Netflix

Lohan Lage Pignone

Lohan Lage Pignone, 31, é nascido no Rio de Janeiro (RJ) e atualmente reside em Nova Friburgo (RJ). Graduado em Letras (Port./Lit.) pela Universidade Estácio de Sá e pós-graduado em Roteiro para Cinema e TV, pela UVA. Publicou, em 2011, o livro “Poesia é Isso” (Ed. Multifoco). Assinou o roteiro e dirigiu o documentário em curta-metragem “Terra Nova, Friburgo”. Formou-se em Direção (Cinema) pela AIC.
NAN