CRÍTICA | Representante no Oscar, ‘Pequeno Segredo’ não desabona nosso cinema

Bruno Giacobbo

O Fla-Flu cinematográfico não estava completo. Não se pode ter um jogo de futebol sem os dois times em campo. Não se pode dizer que um filme é melhor do que o outro sem assistir os dois. Ao escolher Pequeno Segredo, do cineasta David Schurmann, para representar o Brasil na disputa do Oscar 2017, o MinC deu o pontapé inicial nesta partida. A torcida de “Aquarius” (2016), o longa-metragem mais comentado do ano até agora, reclamou. Classificou a escolha como equivocada e de armação. Só que a outra equipe ainda não tinha perfilado na cancha. Logo, ninguém sabia sequer sua escalação. Contudo, com a realização das cabines de imprensa no Rio de Janeiro e em São Paulo, na última quarta-feira, os comentaristas de cinema (ou seriam críticos esportivos?) puderam ter um vislumbre do resultado deste confronto se, de fato, ele fosse um jogo. E a verdade urge e é indispensável nestas horas: o nosso candidato a maior festa do cinema mundial não venceria este prélio.  

Quem nunca ouviu falar nos Schürmann? Eles são os Grael que decidiriam explorar o mundo, em vez de conquistar medalhas olímpicas. De uma forma ou de outra, enchem de orgulho os brasileiros. A trama é baseada numa história real, relatada em livro pela matriarca Heloisa (Julia Lemmertz). Em uma destas viagens, eles conheceram Robert (Erroll Shand) e Jeanne (Maria Flor), um neozelandês e uma brasileira, casados e esperando uma criança, que viviam na Nova Zelândia. A afinidade, por causa da paixão pelo mar e outras coisas, foi imediata. Um laço se formou entre as duas famílias. No entanto, o mar que aproxima, também afasta. Eles tomaram rumos diferentes, Jeanne deu a luz a Kat (Mariana Goulart) e um ano depois faleceu vítima da AIDS. Condenado, na década de 90 a doença era praticamente fatal, Robert tomou uma decisão dificílima: entregou a filha, igualmente portadora do vírus do HIV, aos amigos brasileiros. Assim, começou a história da pequena protagonista com seus novos pais e, calma, não há nenhum spoiler, já que tudo isto aconteceu de verdade.

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David, o diretor, é um dos filhos de Vilfredo (Marcelo Anthony) e Heloisa, o segundo, para ser preciso. Com 18 anos a mais do que sua irmã adotiva, ele não estava mais no veleiro Aysso quando Kat nasceu e foi adotada. Nem ele e nem o primogênito, Pierre, logo, o roteiro escrito a seis mãos com Marco Bernstein e Victor Atherino foi todo feito a partir dos relatos de sua mãe. E se este distanciamento explica, por exemplo, o não aparecimento dos irmãos em quase toda a película, fora duas pequenas e rápidas cenas, não justifica o tom melodramático da obra, o que no geral, infelizmente, é seu maior defeito. A opção dos roteiristas foi contar esta história por meio de duas narrativas paralelas, porém, separadas temporalmente por alguns anos. Em uma delas, descobrimos como Robert e Jeanne se conheceram. No Pará, terra dela e onde ele estava vivendo fugido da mãe autoritária e preconceituosa, Bábara (Fionnula Flanagan). Na outra, a menina tem 11 anos e vive com os Schürmann. As duas correm paralelamente até acontecer a adoção. Daí em diante temos somente uma linha temporal para seguir.

O filme é essencialmente um melodrama. Uma história verdadeira, bastante tocante e que, sim, deveria ser contada. E a questão não era contá-la ou não contá-la, mas como fazer isto. O cineasta optou por um produto redondo e convencional, cercando-se de profissionais de primeira linha. Responsável pela trilha sonora, o brasileiro António Pinto tem longa trajetória em Hollywood e uma indicção ao Globo de Ouro. Já o roteirista Marco Bernstein tem no seu currículo “Central do Brasil” (1998), vencedor do Urso de Ouro no Festival de Berlim. Só que a equipe tomou uma série de decisões equivocadas. A música é exagerada. Usada para acentuar situações que são naturalmente dramáticas, ela torna tudo mais piegas. Quanto ao roteiro, se a decisão de mostrar narrativas paralelas foi inicialmente interessante, sua execução não foi tão boa assim. Em alguns momentos ela pode gerar um pouco de confusão no espectador, levando este a se perguntar: peraí, onde estamos agora? Em compensação, não há nada para reclamar da direção de arte assinada pela ganhadora do Oscar, a alemã Brigitte Broch.

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As melhores coisas da película de David Schurmann são, sem duvida alguma, a fotografia de belos cartões postais de Inti Briones e o elenco feminino (entre os homens, Anthony quase não é notado). Da veterana Lemmertz a novata Goulart; passando por Flor e Flanagan, todas brilham um pouco que seja. Em um determinado instante, Heloisa e Bárbara travam um diálogo que, se por um lado soa didático demais, por outro, é crível em pessoas reais, longe da dramaturgia. Se era para termos raiva da avó paterna neozelandesa de Kat, Flanangan conseguiu. Seu autoritarismo e preconceito sem limites nos enojam e na medida que temos ódio da personagem, passamos a admirar a ótima atriz. Por sua vez, a intérprete de Jeanne nos convence com um sotaque que, sinceramente, não sei se é paraense, mas que a torna diferente de todos os outros papéis que desempenhou ao longo da carreira; enquanto Goulart mostra uma maturidade num papel tão delicado quanto complexo. Vamos aguardar seus próximos trabalhos.

No cômputo geral, Pequeno Segredo não faz feio ou desabona o nosso cinema. Ele tem erros e acertos como qualquer outro longa-metragem e vai, provavelmente, fazer um bom público nas salas do Brasil e arrancar incontáveis lágrimas. Contudo, cinematograficamente, ele tem menos méritos do que “O Silêncio do Céu”, “Mãe Só Há Uma”, “Chatô: O Rei do Brasil”, “Mais Forte que o Mundo: A História de José Aldo”, “Sinfonia da Necrópole”, “Aquarius” e “O Roubo da Taça”, nesta ordem, só para enumerar os filmes que foram lançados este ano ou tentaram a indicação brasileira ao Oscar. O que passou pela cabeça da comissão formada pelo MinC ao escolhê-lo? Ninguém sabe. Talvez tenham levado em conta o peso da história e a possibilidade dela comover os membros da Academia. Talvez. É uma aposta. Certeza mesmo, só que este papo de armação é muito mais coisa de torcedor de futebol do que de crítico de cinema.

Desliguem os celulares e boa diversão.

TRAILER:

FICHA TÉCNICA:

Título original: Pequeno segredo
Direção: David Schürmann
Roteiro: Marcos Bernstein
Elenco: Júlia Lemmertz, Marcelo Antony, Maria Flor
Distribuição: Diamond Films
Data de estreia: qui, 10/11/16
País: Brasil, Nova Zelândia
Gênero: drama
Ano de produção: 2015

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN