CRÍTICA | ‘Privacidade Hackeada’ (Netflix)
Jorge Feitosa
A economia das irregularidades.
Em um determinado momento do filme “A Rede Social” (2010), Mark Zuckerberg, então interpretado por Jesse Eisenberg, ouve o seguinte conselho de sua advogada para entrar em acordo com os irmãos Winklevoss, que o contrataram para desenvolver uma rede social e desta ele criou o Facebook: “Aceite o acordo. Será como pagar uma multa de trânsito”. Zuckerberg topou e, desde então, as redes sociais moldaram a forma como interagimos na internet, com o Facebook engolfando todos os principais aplicativos usados para comunicação e, nessa onda, recebendo todos os nossos dados entregues de boa vontade em nome de uma melhor experiência de usuário.
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Sobre o filme
É com essa ideia de um mundo conectado que o documentário Privacidade Hackeada (The Great Hack) nos fisga com as imagens de mensagens, curtições, lembranças pessoais que nós, usuários, compartilhamos, saltando pela tela enquanto o professor David Carrol caminha.
Mas foi preciso que a monetização dos dados pessoais viesse à tona para ditar os rumos da maior democracia do planeta, os Estados Unidos, para que o alerta fosse soado. É certo que, desde sempre, se soube que as informações de usuários eram negociadas entre as redes e as empresas para fomentar o consumo. Mas nada antes havia sido feito para traçar perfis de personalidade a ponto de influenciar eleições. Um trabalho grandioso, ainda que maquiavélico, da empresa britânica Cambridge Analytica.
Até então, o mundo achava que a atividade hacker se limitava a pessoas usando capuzes e as máscaras de Guy Fawkes, imortalizadas pelo filme “V de Vingança”. Mas o bom e velho capitalismo mais uma vez mostrou-se insuperável em nos interpretar. E não estamos falando aqui de uma promoção da Amazon ou de um game legal. Mas de uma análise de dados tão minuciosa que conseguiu incutir o medo e a divisão da sociedade para defenestrar a candidata Hillary Clinton à presidência e colocar o até então motivo de piada Donald Trump no poder.
Trabalho de direção tocante
E o trabalho de direção de Jehane Noujaim e Karin Amer em Privacidade Hackeada, que também escreveu o roteiro com Erin Barnett e Pedro Koss, aborda todo o caso da maneira mais humana possível através da jornada de Brittany Kaiser, que, apesar de americana, carrega a Bretanha no nome. A antiga diretora da Cambridge Analytica tem na cabeça e, lógico, em um backup, todas as negociações feitas, não apenas com os contratantes da empresa de análise de dados, mas também do Facebook, que os vendeu.
É tocante a história de vida da moça. Inicialmente retratada como uma dondoca que só está curtindo a vida, percebe-se no decorrer da narrativa que ela começou como tantos outros jovens dispostos a mudar o mundo na campanha de Barack Obama. Mas, em virtude da crise de 2008 e da doença do pai, teve que se adaptar e sobreviver. E agora, exausta depois de sua jornada, reúne forças e coragem para denunciar o mal que ajudou a causar.
Ao final de Privacidade Hackeada, e sabendo que sai mais barato a Zuckerberg e ao Facebook pagar bilhões de dólares em um acordo para encerrar as investigações sobre a venda feita para a Cambridge, fica na memória a imagem de nossos dados. Ou seja, nós mesmos, evaporando em pixels na tela. Lembrando que se você não está pagando por um produto, então o produto é você.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: The Great Hack
Direção: Karim Amer, Jehane Noujaim
Roteiro: Karim Amer, Erin Barnett, Pedro Kos
Elenco: Carole Cadwalladr, David Carroll, Brittany Kaiser
Distribuição: Netflix
País: Estados Unidos
Gênero: documentário
Ano de produção: 2019
Duração: 113 minutos
Classificação: 14 anos