CRÍTICA | ‘Vice’
Sayd Mansur
Devemos considerar um fato que poucas vezes levamos em conta: Hollywood está à esquerda. Parece algo absurdo de dizer? Mas é fato que Hollywood está bem próxima da agenda problematizadora das “Esquerdas”. Ainda que isso seja algo complicado de dizer em se tratando do país do macarthismo, o mesmo que já elegia maus atores (com um passado de dedo-duro) bem antes de nós atingirmos nossa cota de charlatãos. Basta prestar atenção nos enredos ou nos pequenos detalhes das batalhas incessantes entre oprimidos e opressores, poderosos e valentes, na balança sempre pendente, em constante disritmia, buscando o equilíbrio entre a corrupção e uma boa vontade só encontrada nos puros de coração. As lendas são antigas, é claro, e, desde tempos imemoriais, as narrativas do bem contra o mal são o que motiva (ou quem sabe movem) a humanidade.
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Mas não pense que estamos esquecendo o fato de que Hollywood se apropria do que de melhor se pensa e escreve, e tenha poder para contratar os melhores sorrisos que o dinheiro pode comprar. Com um bom colorido, continuam contando e recontando aquelas velhas histórias que tanto dão prazer a quem nunca viu de fato a crueldade perder uma batalha para a boa vontade.
Algo nisso está certo, afinal, todo lugar comum tem um quê de verdade já atestada. Mas, preferível a repetir um conceito já aceito, deveríamos, às vezes – pela curiosidade ou por puro exercício -, pensar no sentido “anti-horário”, girar a manivela ao inverso e tentar compreender olhando do avesso o que pode não estar tão claro assim. Poderia o grande cinema comercial trazer em si mesmo tanto a medida para a cura quanto o excesso, a dose desproporcional que nos envenena? O falta, ou quando sobra? Haveria um caminho do meio, como sugerem os “zens” para o equilíbrio e a proporção certa de alienação excitante capaz de cativar o público antes de inseri-lo nas ideias mais transgressoras?
A resposta a essa pergunta não vai ser dada agora, mas a apreciação de Vice, de Adam McKay, pode ser dada com uma aliada na formulação desse problema. E, como todos sabemos, perguntas bem formuladas são mais do que a metade do caminho para se conseguir uma resposta satisfatória.
A biografia do até então discreto 46º vice-presidente dos EUA merece elogios que vão além da atuação de Christian Bale ao longo dos mais de 50 anos de carreira desse que foi o grande arquiteto da “Guerra ao Terror”, da “Guerra do Afeganistão” e da “Guerra do Iraque”, os conflitos que deram a cara aos primeiros anos do século XXI. McKay, que assina sozinho o roteiro, é esperto o suficiente para não demonizar seu personagem, nem expor suas decisões e maquinações antiéticas como se faz com um típico vilão dos quadrinhos, aqueles que manifestam sua vontade sobre mundo a fim de obter poder ilimitado. Mas, quando o faz, é da forma mais divertida possível, ao comparar a crescente fome de poder de Cheney ao insaciável paladar de Galactus, “O Devorador de Mundos”, da Marvel Comics.
A trajetória de Cheney é curiosa por si só, e podia merecer um filme até mesmo se encerrasse antes de sua chegada à Casa Branca, ou melhor, antes de sua última e definitiva passagem pelo sede do governo. Afinal, Cheney participou ativamente nos bastidores do poder norte-americano dos anos 70 ao princípio dos 90, sempre aliado aos valores tradicionais e ao partido republicano de Nixon, Reagan e Bush “pai”.
Aviso de um quase “spoiler”: e, de fato, o filme que começa reencenando os primeiros anos de um Cheney absolutamente alcoolizado, com o casamento em ruínas e acomodado em seu emprego de instalador de fios de alta tensão no Centro-Oeste americano. Vice tem sua primeira brincadeira metalinguística ao levantar créditos na primeira hora de duração, fazendo a gente imaginar, como seria maravilhoso se a vida pública de Cheney tivesse parado por ali, antes do ressurgimento de Bush filho (comportado após anos de alcoolismo, mas nem por isso mais inteligente), convidando Cheney para ser seu vice-presidente e servir como uma base de prestígio à campanha vitoriosa que se encerrou após uma tensa recontagem de votos na Flórida.
É pelo ritmo dinâmico e críticas bem-humoradas que o Vice faz pensar, como um discurso tão claro como esses chega para as grandes massas, aos maiores cinemas do mundo (ou, breve no streaming mais perto de você…), e nenhuma alteração visível se faz no status quo? Claro que filmes não mudam o mundo, mas poderiam – e deveriam (se é que já não estão fazendo isso em silêncio, sem alarde, desde início do último século), afinal, a dinâmica exposição de imagens “vivas” (por si só um espetáculo) e a natureza coletiva do cinema (onde uma projeção se faz para uma ou “X” pessoas), atingem a um sem número de almas como uma experiência fechada em um curto período do espaço-tempo. E para nos afastar de polêmicas inúteis, podemos lembrar que a escrita/leitura tem outra forma de contágio, provavelmente mais profunda, porém mais restrita.
Talvez a resposta para essa questão, dessa vez, esteja no próprio filme. McKay, em sua melhor brincadeira metalinguística, encena, em alguns momentos (a melhor de todas, numa cena pós-créditos, dos legítimos créditos), uma daquelas famosas reuniões onde grandes corporações (ou governos, agora sabemos) pesquisam o que se passa em nosso inconsciente coletivo, a fim de alcançar um termômetro do que se passa nas mentes, antes que se atinja as ruas, a tempo dessas ideias serem moldadas à sua serventia e propósito. Melhor exemplo impossível, para ilustrar como a informação se tornou a arma mais valiosa de nossos tempos. “Todo saber é um poder”, já repetiram à exaustão os seguidores do filósofo francês pós-estruturalista Michel Foucault. E, aqui, fica claro, se o povo americano estava indignado com o 11 de Setembro, tudo seria permitido, até conceder poderes ilimitados ao seu vice-presidente, que, segundo a Constituição norte-americana, fica num curioso limbo, numa coxia que agrega tanto o Poder Executivo como o Legislativo, e não se subordinaria a nenhuma das duas ao mesmo tempo!
Voltando à abertura, é de se levar em conta que este ano temos quatro dos oito filmes indicados ao Oscar tratando de temas políticos e sociais: Infiltrado na Klan, Roma, Vice e a pura e simples presença de Pantera Negra, um filme de super-heróis, que entra pela primeira vez nessa disputa. Isso quando ignoramos outros filmes onde uma temática problematizadora aparece de forma mais sutil, como Green Book: O Guia e Bohemian Rhapsody.
E talvez, só talvez, a grande questão seja de fato o equilíbrio entre a a alienação própria ao entretenimento e a conscientização, nunca apontando numa direção, mas expondo sempre as consequências de determinadas atitudes. Poucos filmes conseguem isso. Outro dia, assumo que achei emocionante e uma bela tomada de posição quando em Thor: Ragnarok (2017), Odin, pela voz de Anthony Hopkins, diz a seu filho Thor e para espectadores de todo o mundo que Asgard não está acabada, que não é um lugar, que Asgard é onde está nosso povo. Como não pensar em Israel e em todo o sangue que ainda vai ser derramado em razão de um contrato assegurado por um livro religioso? Bem, em não menos do que trinta minutos surge uma sequência onde conseguiram a proeza de inserir no meio de uma guerra mágico-medieval a inserção de duas metralhadoras, que exibidas de maneira quase libidinal, criam beleza e um ar de glória que dificultarão para muitos espectadores uma reflexão futura sobre o descompasso descomunal dessa arma mortífera frente à frágil máquina humana.
Entre paródias shakespearianas, alguns raios-x do imaginário da América profunda e um olhar sobre os valores conservadores, talvez o que seja o maior mérito de Vice seja a maneira oportuna e bem-humorada com que o filme captou e transmitiu como pode se dar ao longo das últimas décadas essa silenciosa mudança. A transformação que pende hoje no mundo todo para os ditos valores conservadores, que nem sempre estão identificados com temas outrora tradicionais como a vida, os Direitos Humanos (tortura?), a aceitação das diferenças, dos estrangeiros, nosso direito à privacidade, à informação e ao livre arbítrio de todo o cidadão. O filme está aí, divertindo e ilustrando as estratégias que mantém de pé nossas democracias representativas, com seu protagonista nunca identificado como um herói ou vilão, mas apenas alguém diante do qual estamos nos detendo por umas duas horas. Seja pela curiosidade, por interesse ou somente para zerar a lista de filmes na corrida ao Oscar 2019, o fato é que está tudo claro, como se alcança o poder e, quando lá chega, como se costuma agir. As conclusões ficam a critério do espectador, pois o resultado disso tudo está aí no mundo à nossa frente.
::: TRAILER
::: FICHA TÉCNICA
Título original: Vice
Direção: Adam McKay
Elenco: Amy Adams, Steve Carell, Christian Bale
Distribuição: Imagem
Data de estreia: qui, 31/01/19
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 132 minutos
Classificação: 14 anos