Dona Iracema crítica do álbum Velório

‘Velório’, novo álbum da Dona Iracema, é impecável e imprescindível

Wilson Spiler

Lançado no último dia 13 de julho, o segundo álbum de estúdio da banda Dona Iracema, Velório, é um joia rara da nova geração do rock brasileiro. Potente, afirmativo, politizado, irreverente e MUITO autêntico, traz influências do hardcore, do velho rock ‘n’ roll, mas, principalmente (e incrivelmente) do baião, som tão característico da região Nordeste. Há até brincadeiras com o axé.

Dona Iracema, banda de Vitória da Conquista, na Bahia, de fato, não nega as raízes. E nem tinha como. A vocalista Balaio traz o sotaque baiano carregadíssimo, que remete bastante a Otto e ao saudoso Chico Science, ainda que eles sejam pernambucanos. Mas certamente há influências da Nação Zumbi nessa mistureba boa toda aí. O ritmo, batizado pelo próprio grupo de “caatincore”, vai muito além dos dois artistas citados. Não há como deixa de lembrar de diversos outros, como a bateria e a guitarra de Pitty – essa sim baiana -; bem como o baixo de Champignon; e (por que não?) um suingue de Móveis Coloniais de Acaju.

Mas “reduzir” a Dona Iracema apenas a comparações com outras bandas e artistas seria um desmerecer um trabalho com identidade completa original. Com muita propriedade, o grupo consegue mexer em assuntos espinhosos e imperativos na sociedade atual. E não tinha como ser diferente, afinal, Balaio é, na verdade, Gabi, mulher trans, voz e uma das letristas do grupo. Fazer um disco apolitizado tendo uma vocalista assim seria impossível.

O álbum

“Estatística”, faixa que abre o álbum Velório, traz versos como “No relatório da balística constava que foi fatal o tiro de bala achada. É que nossa característica em ser estatística tá gravada no chassi”. A força dessa composição é de uma suspiro de esperança de que o rock, embora recheado de conservadores, ainda tem espaço para quem enxerga a realidade da maneira como ela é: cruel, racista, preconceituosa, entre outros fatores negativos.

Velório segue mostrando a personalidade da banda Dona Iracema. Recheado de porradas, o álbum desfila um repertório de canções muito bem elaboradas. Tanto musicalmente como nas letras. “Dedo Na Cara” e, principalmente, “Qual a Graça” são outras que batem no cidadão de bem brasileiro hipócrita: “Nesse país que se bate em casa e que mata mais travesti, tem gente que adora fazer boa praça e humor com intenção de ferir”.

“Plano Funerário” já aborda a precarização do trabalho, assim como as cobranças cada vez maiores no mercado de trabalho e até uma citação a um certo presidente genocida: “Mas coveiro eu não sou”. Essa relação também acontece em “Mão na Cabeça”. Uma clara analogia ao gado que o segue e à paranoia do inimigo não existente.

Homenagem aos mortos na pandemia

Encerrando o disco Velório, a música mais estranha, com relação à porradaria do disco, e talvez a mais arrepiante da Dona Iracema. A faixa “Canto Velório”, com participações de Sammliz, Enzo Camurça e Rejane Ayres (vozes), mostra um outro lado do grupo, mais sensível e delicado. Enquanto Balaio recita nomes de pessoas comuns que se foram e deixaram saudade, um dedilhado suave de violão dá o tom da canção.

A música é uma clara referência aos mortos da pandemia, principalmente ao genocídio ocorrido no Amazonas. Versos como “Para aqueles que não tinham nem eira nem beira e afeito hospitalar, que do leito nem viram a cabeceira nem tiveram direito a respirar” e “A pátria querida que outrora era tida de vívida e baião, hoje chora a ida, o ir embora, a ardida ferida da cisão” emocionam qualquer coração mais duro.

O desfecho da canção, depois de homenagear anônimos, volta a lembrar de mortos, mas agora de famosos, como Agnaldo Timóteo, Genival Lacerda, Nicete Bruno, Eduardo Galvão, Rodrigo Rodrigues e Aldir Blanc, por exemplo. Todos levados pela Covid-19 e que poderiam ter sido salvos se o governo tivesse comprado vacina antes e não estivesse afundado em corrupção. É de fazer chorar.

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Assista ao filme Velório, da Dona Iracema

Por fim, Dona Iracema ainda produziu o filme Velório, que faz um ensaio sobre a morte e o descaso nos tempos de pandemia. A produção audiovisual mostra a banda tocando todas as canções do álbum, sendo que cada uma ganha seu próprio roteiro que ajuda a contar as histórias presentes nas letras das músicas.

De acordo com Gabi, “o vídeo complementa o conteúdo de cada canção. Na primeira canção do disco, por exemplo, como falamos sobre necropolítica, utilizamos na edição notícias de jornais sobre assassinatos e mortes. Na canção ‘A morte do anjo’, temos um momento onde um velório é reproduzido”.

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O velório da Dona Iracema

Formado em 2012 na cidade de Vitória da Conquista, o grupo tem Balaio/Gabi (vocal); bem como Diegão Aprígio (vocal e contrabaixo); Pablo Bahia (vocal e guitarra); e Oscar Sampaio (vocal e bateria).

Tratar Velório da Dona Iracema como mais um álbum de rock de uma banda progressista não é justo. Também talvez possa soar como exagero dizer que é o novo Cabeça Dinossauro dessa geração, até porque o som em nada remete aos Titãs. Mas, sim, é um disco que está entre os melhores dos últimos tempos no novo rock brasileiro. Plural, transgressor e sem medo de ousar, bate forte no peito de cada um que ouve.

Produzido, gravado, mixado e masterizado pelo renomado produtor André T, Velório é impecável de cabo a rabo. Balaio (ou Gabi), como preferirem, está completamente à vontade na voz e é extremamente afinada. Além disso, mostra uma extensão vocal que não se vê com tanta facilidade por aí. A sensibilidade e a poesia na composição sem apelar para letras mastigadas e clichês, bem como rimas fáceis, são pontos altíssimos que perduram por todo o disco.

Reforços Luxuosos

A banda Iracema ainda conta com dois reforços luxuosos nas participações especiais em Velório. Os músicos Armandinho Macêdo, famoso músico baiano, na canção “Pendura pelos Ovo”; e Rodrigo Lima, do Dead Fish, na faixa “Plano Funerário”.

Como a própria Dona Iracema resume, Velório fala de necropolítica, solidão, luto e todos os sentimentos e reações. Do riso ao choro, da raiva à saudade, da dor ao medo. Uma obra para cantar, dançar, rir e se emocionar. Um verdadeiro tapa na cara da sociedade e, certamente, um marco no rock brasileiro. Um álbum imprescindível para entender os nossos tempos e contar a verdadeira história do nosso país.

Velório já está “favoritado” no Spotify. Agora é a vez de acabar essa pandemia para pularmos, nos emocionarmos e perdermos a voz de tanto gritar com os shows da banda Dona Iracema. Mal vejo a hora.

Ouça o álbum Velório, da banda Dona Iracema

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Wilson Spiler

Will, para os íntimos, é jornalista, fotógrafo (ou ao menos pensa que é) e brinca na seara do marketing. Diz que toca guitarra, mas sabe mesmo é levar um Legião Urbana no violão. Gosta de filmes “cult”, mas não dispensa um bom blockbuster de super-heróis. Finge que não é nerd.. só finge… Resumindo: um charlatão.
NAN