RESENHA | GUERRA DO VELHO, de John Scalzi, ou “Jovem, você que completou 75 anos, aliste-se já nas Forças Coloniais de Defesa!”

Eduardo Cruz

“No meu aniversário de 75 anos fiz duas coisas: visitei o túmulo da minha esposa, depois entrei para o exército.”

Esse é o trecho que abre “Guerra do velho”, primeiro livro de John Scalzi, uma ficção científica militar que é uma homenagem descarada ao clássico “Tropas estelares“, mais um bem vindo lançamento da editora Aleph, que não precisava de mais esse pra ter um catálogo incrível. Mas eles fizeram mesmo assim rs. E já começo essa resenha adiantando o seguinte: se você gosta do “Tropas estelares”, vai adorar “Guerra do velho”! e, se você não curte “Tropas estelares”, pode ser que mesmo assim goste de “Guerra do velho”! O texto de Scalzi é extremamente envolvente e a leitura possui um ritmo absurdamente ágil, mesmo para uma história de ficção científica, um gênero que por vezes, pode ser bem hermético e excludente, dependendo do autor em questão. A leitura em “Guerra do velho” engrena já em suas primeiras páginas e à medida que a história vai avançando, o ritmo aumenta, fazendo com que o livro, de cerca de 360 páginas, seja devorado em uma questão de poucos dias, e até os leitores mais lentos ou com mais dificuldades para conciliar um tempo livre à leitura poderão se surpreender com a velocidade com que se chega ao final,  que, aliás, vai deixar uma tremenda sensação de “quero mais”.
Normalmente sou muito ressabiado com séries literárias. Não as vejo com bons olhos. Sem citar nomes (cof, cof, CREPÚSCULO!!, cof, cof!!), pode me chamar de ranzinza, mas a maioria delas, pra mim, não passa de caça níqueis, esperando para serem abocanhados por produtores e estúdios de Hollywood, em troca dos direitos de adaptação para TV e cinema, Bonequinhos e sabe-se lá mais o quê. O céu (e a ganância) é o limite. Não me acostumo com o fato de livros serem usados para gerar uma moda comercial, uma tendência de consumo. Existem raras exceções e essa série, que já está no oitavo volume lá fora, é uma exceção honrosa!
Meus amigos mais próximos devem estar de saco cheio pela quantidade de vezes que recomendei este livro em conversas. Alguns até compraram, possivelmente para se verem livres da minha ladainha. Com um deles até brinquei: “Ei, se você não gostar eu compro seu exemplar e fico com um para dar de presente!”. Mas estou seguro que não vou perder essa grana. Meu amigo não vai se desfazer dele. Assim que começar a ler, se é que já não o fez, não há volta. Resta apenas esperar ansiosamente os próximos livros da série, que a editora Aleph já confirmou que vai publicar aqui no Brasil.

The ghost brigades, próximo volume da série a sair no Brasil

Bom, chega de mimimi e vamos à história: Ambientada em um futuro não tão próximo, “Guerra do velho” conta a história de John Perry, um idoso da Terra que havia planejado, junto com sua esposa, se alistar nas Forças Coloniais de Defesa. As FCD são uma instituição poderosa, independente dos governos da Terra, com tecnologia ostensivamente superior à qualquer coisa encontrada no planeta Terra, e que promove o colonialismo humano em nível cósmico, protegendo e garantindo a instalação de colonos humanos em planetas com recursos necessários à espécie humana. Porém, o universo é muito grande e existem incontáveis raças alienígenas, com tecnologia igual ou superior à humana. Por “tecnologia”, leia-se “poder de fogo” mesmo. Isso significa que, na maior parte dos casos, é preciso lutar para manter território conquistado. Matar ou morrer. Uma guerra sem fim.
As coisas não saem como planejado para John e Kathy, sua esposa, padece de um AVC antes de completar a idade mínima para o alistamento. Sozinho no mundo, John resolve seguir em frente com seu plano, já que, a seu ver, não lhe resta mais nada pelo que ficar se agarrando em seus últimos anos de existência na Terra. Se despede dos parentes e amigos que restaram e parte rumo ao desconhecido. Muito pouco se sabe a respeito do modo como as FCD conduzem seus negócios universo afora, e para descobrir é preciso se alistar, por um prazo mínimo de 2 anos, que pode ser prorrogado por até uma década! A comunicação entre as colônias e a Terra é restrita e quem parte, seja como colono ou soldado, não pode nunca mais retornar. Por esse motivo, é um grande mistério e motivo de enorme especulação na Terra a forma como as Forças Coloniais de Defesa conseguem transformar um idoso de 75 anos em um soldado apto a lutar contra raças alienígenas perigosíssimas. Alguns suspeitam de terapia de genes, rejuvenescimento, troca de órgãos velhos por novos, mas ninguém na Terra sabe nada de concreto quanto ao procedimento real. Bem, pelo menos até que se assine o documento de alistamento, e bem longe do planeta, seja submetido à verdade: A FCD cultiva corpos novos para seus recrutas idosos e com o auxílio de nanotecnologia, transfere as mentes dos idosos para estes corpos, jovens e enormemente aprimorados em relação a um corpo humano: com desempenhos físicos incríveis como conseguir extrair energia de luz solar, enxergar no escuro, força ampliada, correr 20km em uma hora, ou ficar pelo menos 6 minutos sem precisar respirar, entre outras façanhas, Scalzi aborda temas atuais como pós-humanismo, transhumanismo, etc. Humanidade 2.0. Mas a maioria dos “ex-velhos” pensa logo em outro uso mais urgente para seus novos corpos: S-E-X-O!

“A ferocidade com a qual os recrutas se lançaram ao sexo sem dúvida parecia inadequada se vista de fora, mas fazia todo o sentido pela nossa posição (fosse em pé, deitada ou curvada). Pegue um grupo de pessoas que, em geral, fazia pouco sexo por falta de parceiros ou declínio de saúde ou libido, enfie-as em corpos jovens, novos em folha, atraentes e de alto desempenho e jogue-os no espaço, longe de tudo que conheciam e de todos que amaram. A combinação desses três elementos era uma receita para o sexo. Fazíamos porque podíamos e porque era melhor que a solidão”

Juntamente com este corpo aprimorado geneticamente, a FCD oferece aos recrutas o BrainPal™, um computador integrado ao próprio cérebro dos soldados, uma ferramenta incrível utilizada para comunicação não verbal, repasse de dados de batalha, interface com equipamentos e armamentos e até mesmo para fins de entretenimento. Imagine fazer como Perry e armazenar todos os episódios de Looney Tunes em sua cabeça para assistir entre uma missão e outra? Além disso, o sangue desses corpos novos é substituído pelo SmartBlood™: um enxame de nanomáquinas que carregam oxigênio com o quádruplo de eficiência da hemoglobina humana, além de impedirem o soldado de morrer por perda de sangue, independente da extensão do ferimento. Nos trechos em que tem de explicar a tecnologia do universo que criou, Scalzi dá um show: não chega realmente a complicar nada (exceto a parte em que um dos personagens explica o funcionamento teórico da propulsão das naves das FCD, aquilo é de entortar o cérebro! ;>)) a ponto de ficar incompreensível, mas também não menospreza a inteligência do leitor. Inclusive, as cenas de batalha que ele constrói se assemelham muito a algumas cenas que Robert Heinlein narra em “Tropas estelares”, quando vemos os trajes de combate e suas funcionalidades e opções de armamento. Aquela sensação que o Heinlein, genial, já em 1959 nos passa, de estar imerso em um empolgante jogo de tiro em primeira pessoa, Scalzi consegue reproduzir, com batalhas empolgantes contra as mais variadas raças alienígenas.

Soldado das FCD Vs. um Consu (fan art)

Aliás, as raças alienígenas são outro destaque de “Guerra do velho”. Bastante diferentes entre si tanto fisicamente quanto em costumes, somos brindados com criaturas peculiares como os Consu, uma raça que combate os humanos num misto de competição com propósitos religiosos, e que apesar da superioridade tecnológica, utilizam tecnologia similar a seus oponentes nas batalhas. Os Consu possuem uma crença a respeito de não se macularem em contato com raças “inferiores”, e que, quando obrigados a realizarem uma assembléia com os humanos, matam seu próprio emissário ao final da audiência e as instalações utilizadas para o encontro são lançadas no buraco negro mais próximo. Suas definições de esnobismo foram atualizadas. Vemos também os Rraey, uma espécie descrita como mais próxima de um pássaro do que um humanóide, e com um gosto por carne humana; inclusive se especializando em diversos pratos utilizando essa iguaria. Ou os Covandu, bem semelhantes aos humanos, exceto por um detalhe: possuem dimensões liliputianas. Mas não os considere menos perigosos por isso.

“(…) Então, você combate uma criatura dessas assim: pisando nela. Simplesmente põe o pé sobre ela, aplica pressão e pronto. Enquanto você está fazendo isso, o Covandu está disparado sua arma em você e gritando a plenos pulmõezinhos, um guincho que talvez seja impossível de ouvir.

(…) Mas, na maioria das vezes, era apenas pisar. Godzilla, o famoso monstro nipônico, que estava em seu milionésimo remake quando deixei a Terra, teria se sentido em casa.”

Um Rrraey (fan art)

O livro é dividido em atos muito bem definidos, onde passamos pelo ingresso às FCD, o treinamento  com o Sargento-mor Ruiz (um sargentão linha dura que coloca o Sargento Hartman, de “Nascido para matar” no chinelo!) e finalmente as missões a serviço das FCD, e ao longo dessa viagem conhecemos personagens coadjuvantes com quem desenvolvemos uma boa empatia, os amigos que John faz antes mesmo que a troca de corpos aconteça, o “Esquadrão velharia”, como o grupo se apelidou. Mas não se apegue a ninguém: assim como em “Tropas estelares”, as coisas mudam em uma fração de segundo e vários destes personagens são descartados em fins cruéis. Mas ei, não falei que isso era guerra?
Abordando temas como os valores que nos mantém humanos, amizade, lealdade, honra, ética em relação a outras formas de vida e até mesmo sobre o significado de fazer parte de um relacionamento a dois, “Guerra do velho” surpreende por sua aparente superficialidade, por ser uma história de ficção científica, gênero que sofre preconceito pelos motivos que mencionei lá em cima, mas com muito conteúdo filosófico logo abaixo da (eletrizante) superfície.

Arte da capa da primeira edição americana de “Guerra do velho”

Enfim, se você tiver que ler apenas mais um livro nesse ano, que já está em seus espasmos finais, ou se você quer se iniciar na ficção científica, mas não está atrás de algo hard como William Gibson ou Philip K. Dick, por exemplo, por que não dar uma chance a “Guerra do velho”? Não posso prometer que compro o exemplar de todos que não gostarem, como prometi ao meu amigo, mas acho que nem vai ser necessário….
A propósito, pra finalizar, por que só aceitar idosos para formar um exército? esse trecho do livro responde:

“Esse é um dos motivos pelos quais as FCD selecionam idosos para se tornarem soldados. Não é porque vocês todos estão aposentados e são um peso para a economia. É também porque vocês já viveram o bastante para saber que há mais na vida do que a própria vida. A maioria de vocês criou famílias, teve filhos, netos, e entende o valor de fazer algo além de seus objetivos egoístas. Mesmo se nunca se tornarem colonos, ainda vão reconhecer que as colônias humanas são boas para a raça humana, algo pelo qual vale a pena lutar. É difícil enfiar esse conceito na cabeça de alguém com 19 anos. Mas vocês são experientes. Neste universo, o que conta é a experiência.”

Na dúvida do que ler esse ano, não perca “Guerra do velho”.
Texto gentilmente cedido pelo blog Zona Negativa

FICHA TÉCNICA
ISBN: 9788576572992
Edição: 1º
Ano: 2016
Número de páginas: 368
 Acabamento: Brochura
Formato: 16x23cm
Peso: 0,575kg

Eduardo Cruz

NAN