Je Suis Karl crítica do filme Netflix

‘Je Suis Karl’ mostra como o fascismo está mais vivo do que imaginamos

Wilson Spiler

Maxi Baier (Luna Wedler) é uma sobrevivente de um ataque terrorista que matou sua mãe e seus dois irmãos, restando apenas o pai. Em um belo dia, a jovem conhece Karl (Jannis Niewöhner), um sedutor estudante que a convida para um seminário de verão sobre a diversidade. Entretanto, na chamada para o evento destaca-se a frase “assuma o controle”. Juntos, eles tornam-se parte de um movimento juvenil europeu que visa tomar, de fato, o poder.

Com uma premissa de um filme político instigante, Je Suis Karl, que estreou recentemente no catálogo da Netflix, já inicia à toda, mostrando o ataque terrorista por vários ângulos, não só através das câmeras, mas como ele afetou as vidas de uma grande número de pessoas, principalmente no que tange os estrangeiros.

Politização necessária

Je Suis Karl é recheado de fatores interessantes. Um deles é a abordagem sobre o uso do medo e do terror, e sua associação à questão da anti-política, algo tão em voga no cenário nacional e mundial. A renovação nos poderes Executivo e Legislativo, por muitas vezes, é benéfica, mas já vimos em eleições recentes – inclusive no Brasil – que focar em outsiders não é exatamente a saída para tornar o mundo melhor.

Afinal, como o significado da própria palavra política já é algo que deveríamos refletir. Ser político é saber negociar, fazer alianças. E se o governante não sabe agir como tal, ou sofre impeachment ou vira um ditador. Dos dois jeitos, o país acaba em desastre social e econômico. Outro problema é quando essas ações são usadas para fins pessoais e, consequentemente, afetam a maior parte da população, exceto as elites brancas.

Direita x esquerda

Por isso, embora seja estressante e cansativo, ser politizado, saber em quem está votando, o que o candidato fez no seu mandato anterior ou até detalhes de sua vida pessoal, assim como respeitar a democracia, são fatores tão importantes. Há uma fala de Karl que resume bem essa questão de como não ser politizado fez avançar assustadoramente a extrema-direita fascista no planeta.

“Ela é de direita? Eu, sinceramente, não estou nem aí. Porque direita e esquerda são termos que não existem mais para mim. Eles também mudam constantemente. Alguma coisa que era claramente de esquerda há 10 anos, de repente, vira de direita. Isso diz tudo. Temos direito a ter nossas próprias opiniões. (…) Ou eu seria um fascista por querer que os criminosos que mataram sua família sejam severamente punidos. Você acha que eu sou fascista?“, exclama.

Jogar esquerda e direita no mesmo bolo ou torná-lo um conceito ultrapassado é não entender a História e só dar as mãos ao fascismo pintado de gente branca neoliberal. Aliás, por falar em branquitude, é só dar uma olhada nos personagens do filme Je Suis Karl que pretendem revolucionar e tomar o poder. Se encaixam perfeitamente na tal raça ariana, não é mesmo?

Fascismo escancarado

Além disso, o seminário funciona como uma espécie de culto, dando uma alfinetada também nos fundamentalistas religiosos, que almejam ocupar cada vez mais cadeiras no Legislativo e no Executivo. Inclusive, não é à toa que quando Maxi é convidada para o evento por Karl para o evento, ela pergunta: “Você é de igreja?”.

Outro grande exemplo no filme Je Suis Karl de como o fascismo tenta ficar oculto sob esse discurso de que não é direita nem esquerda é quando os participantes do movimento sugerem que algum de seus líderes seja baleado. Vimos recentemente no excepcional Aranha, que está em cartaz nos cinemas, a mesma tática utilizada por um grupo de extrema-direita chileno que se aliou aos militares para apoiar a ditadura, buscando evitar a “instalação do comunismo no país”.

Discurso de ódio

A questão do nacionalismo, mais uma forte característica do fascismo, também é bem visível em Je Suis Karl. Principalmente nas músicas das quais o grupo de rebeldes ouvem. Em determinada cena em uma casa de shows, o rapper canta:

“Um espírito estrangeiro se alastrando. A hipocrisia do regime está virando um problema pessoal (…) Minhas melodias se espalham enquanto os políticos usam nossa dívida. Eles ajudam os outros, talvez, mas com metralhadoras. (…) Vou me revoltar, vou procurar uma luta com ódio para salvar a Europa. É preciso resolver o verdadeiro problema, precisa criticar o sistema e se preparar para ir à guerra. Eles vão se calar quando o chão estiver cheio de crateras (…) Pelos nossos pais! À Guerra!”

É ou não é um discurso de ódio, racista e xenófobo, contra refugiados e negros, e elevando a Europa como outro patamar de nação? Só não enxerga quem não quer. Em outra canção, essa manifestação já é escancarada: “Foda-se a sociedade e suas regras que nos causam desconforto. Nossa raça é superior. Falamos do fundo do coração. Raça Branca Primeiro”. A cena de Karl se beijando no espelho é uma baita síntese do quão esse movimento White Supremacy se acha tão acima dos outros seres humanos.

O buraco em que nos metemos

A ideia de liberação de armas também reforça essa mensagem tão exposta nos dias atuais. Afinal, é um objetivo que só facilita a formação de milícias e grupos extremistas como estes. Mas há outras falas e passagens que merecem ser destacadas no filme Je Suis Karl, da Netflix, para entender melhor o que está acontecendo no mundo. A mais efusiva talvez, que inflama de vez os apoiadores desse neofascismo, também sai da boca do próprio Karl. “Eles vêm aqui, se aproveitam as nossas leis e invadem tudo com suas bombas! (…) Temos que acabar com essa mistura doentia de raças e a pena de morte nos ajudará!”

Com um linguagem própria, falas decoradas, canções e até encenações para grudar a mensagem, Je Suis Karl é um filme didático, que expõe como muita gente compra um discurso pomposo de gente bonita com pele clara sem entender exatamente o que estão dizendo. É um movimento que mal sabe o conceito de minorias, algo que não se traduz exatamente em números, mas em cargos mais elevados, dos quais a grande maioria deles são recheados por bundas brancas e preconceituosas.

Discurso antigo

Je Suis Karl revela ainda como o poder das redes sociais pode amplificar essa fome por ódio e ser em usada para o mal. O próprio nome do filme já é uma analogia direta às hashtags #eusou e #somostodos, tão frequentemente utilizadas nas mídias quando nos colocamos ao lado de alguém ou de alguma posição da qual defendemos. Além disso, explica com a maior transparência possível como esse discurso anti-política está longe de ser novo e a solução para os problemas da sociedade.

Ademais, a escolha do nome do personagem por trás disso – provavelmente – não é por acaso. Afinal, qual é o maior expoente da esquerda “socialista e comunista”? A resposta está na ponta da língua: Karl Marx, que certamente não aprovaria essa ideia de grupo revolucionário.

Por fim, Je Suis Karl é filme com ótimas atuações e um roteiro bem coeso, que nos faz entender exatamente o que se passa em nossos tempos. Com nossa educação tão precária, o medo é entenderem a mensagem de outra forma. Assim, o desfecho simbólico, mostrando figurativamente o buraco em que nos metemos, pode ser uma profecia de um futuro ainda pior.

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Trailer do filme Je Suis Karl, da Netflix

Je Suis Karl: elenco do filme (Netflix)

Luna Wedler
Jannis Niewöhner
Milan Peschel
Elizaveta Maximova
Marlon Boess
Veronika Bellova
Aziz Dyab
Daniela Hirsh
Melanie Fouche
Hendrik Voss

Ficha Técnica (Je Suis Karl – Netflix)

Título original do filme: Je Suis Karl
Direção: Christian Schwochow
Roteiro: Thomas Wendrich
Data de estreia: sáb, 25/09/21
Onde assistir ao filme ‘Je Suis Karl’: Netflix
País: Alemanha, República Tcheca
Gênero: drama, romance, suspense
Duração: 126 minutos
Ano de produção: 2021
Classificação: 16 anos

Wilson Spiler

Will, para os íntimos, é jornalista, fotógrafo (ou ao menos pensa que é) e brinca na seara do marketing. Diz que toca guitarra, mas sabe mesmo é levar um Legião Urbana no violão. Gosta de filmes “cult”, mas não dispensa um bom blockbuster de super-heróis. Finge que não é nerd.. só finge… Resumindo: um charlatão.
NAN