La Flor filme argentino de 13 14 horas crítica

‘La Flor’: o filme de quase 14 horas que faz o cinema pulsar de ousadia

Bruno Giacobbo

Se tomarmos como verdade tudo o que é falado em entrevistas e em reportagens, o cineasta portenho Mariano Llinás é um autêntico excêntrico. Nascido no ano de 1975, professor da Universidade Del Cine de Argentina, ele jura que quase não assiste a filmes contemporâneos. Confessa-se um ignorante nesse sentido. No seu radar cinematográfico estão os clássicos, principalmente os produzidos antes da década de 70. Quando cita diretores que fazem sua cabeça, discorre sobre nomes como o italiano Federico Fellini e os franceses Jean-Luc Godard e Jean Renoir.
E é de outra de suas referências clássicas, o norte-americano Samuel Fuller, que o realizador pegou emprestada a citação que norteou a produção do filme La Flor (2018). E que, de algum modo, norteia a experiência do público ao assistir a essa que é a sua obra-prima: “cinema é como um campo de batalha”.
La Flor filme argentino 13 14 horas crítica
Dez anos. Esse foi o tempo que “La Flor”, uma produção com incríveis e inacreditáveis 13h54min, para ser preciso como um relógio suíço, levou para ficar pronto. A gênese desse epítome de longa-metragem veio do desejo do diretor de contar histórias de um jeito diferente, não tão normal ou tradicional. Essa era uma vontade recorrente.
No entanto, faltava uma razão. Ou melhor, uma inspiração que surgiu, oportunamente, quando ele viu uma apresentação da peça “Neblina”, montada pela companhia teatral Piel de Lava. No palco, quatro atrizes dotadas de uma química ímpar: Elisa Carricajo, Laura Paredes, Pilar Gamboa e Valeria Correa. As tais flores que batizariam a obra. À medida que foi se reunindo com a trupe, Llinás percebeu que adoraria fazer vários filmes com elas. E assim aconteceu.

Um passeio por gêneros diversos

Uma realização da El Pampero Cine, produtora independente do cineasta, a película, dividida em seis histórias em que apenas uma delas possui começo, meio e fim, é um delicioso passeio por gêneros diversos. Na primeira trama, logo após o prólogo apresentado pelo próprio Llinás, que aparecerá mais vezes na companhia de seu Volvo com uma bandeira do Maranhão, nos deparamos com um Filme B de terror e sci-fi, algo que Fuller poderia ter filmado lá pelos idos dos anos 40.
Em um laboratório localizado na Cordilheira dos Andes, às vésperas da Páscoa, as cientistas Lucia (Laura Paredes), Marcela (Elisa Carricajo) e Yanina (Valeria Correa) passam a presenciar situações estranhas a partir da chegada de uma ancestral múmia andina. Como o tempo em cena das atrizes varia de episódio para episódio, a personagem de Gamboa, a misteriosa “La Niña” Cruz, só dá as caras lá pelo fim. Com uma latente atmosfera de suspense e medo, esse foi um ótimo pontapé inicial.
La Flor filme argentino 13 horas crítica

Musical

A segunda história é a favorita de muita gente. Misturando música e suspense, a narrativa versa sobre um casal de cantores, Victória (Pilar Gamboa) e Ricky (Héctor Diaz), em pé de guerra. A mágoa é tanta que eles não conseguem gravar o próximo disco juntos. A solução para o impasse é gravar separadamente cada um e mais tarde mixar. A estratégia não funciona e a pressão do empresário da dupla só aumenta a tensão. Através das canções – três belas composições sobre amor, traição e dor – e de uma conversa mais reservada entre Victória e sua assistente, Flávia (Laura Paredes), tomamos par da situação.
A contextualização de como a paixão se transformou em ódio é muito eficiente. Nesse mesmo episódio, acompanhamos ainda uma subtrama em que Isabela (Elisa Carricajo), líder de uma organização secreta, está em busca de uma toxina que pode retardar o envelhecimento humano. O elo entre as duas narrativas é a personagem de Paredes. Na pele da cantora Andrea Nigro, Correa faz uma participação especialíssima.

História mais longa

Se a primeira e a segunda história duram, respectivamente, 1h20 e 2h13 minutos, a terceira, um enredo sobre espiões internacionais e Guerra Fria que John le Carré certamente assinaria, tem pouco mais de 5 horas de duração. É de longe o maior episódio e, certamente, o meu favorito. Nessa trama, o quarteto tem praticamente o mesmo tempo de cena. São muitas cenas de ação, tanto juntas quanto separadas. O roteiro dedica uma boa parte de seu desenvolvimento para contar, detalhadamente, as histórias particulares das agentes 50 (Elisa Carricajo), 301 (Laura Paredes), Joana D’Arc (Valeria Correa) e Thereza, a Mudinha (Pilar Gamboa). No fim, se o espectador tiver um pouquinho de paciência, será quase impossível não se apaixonar por essas mulheres.
Uma particularidade desse capítulo é que foi rodado ao longo de cinco anos (que consumiram metade das filmagens), em locais tão díspares como a Rússia, a Inglaterra e a Argentina. Esse cuidado de ir até os lugares onde a aventura transcorre confere um enorme grau de realismo. Apesar de ser um dos episódios que não possui um final redondo, creio que o modo como Llinás decidiu amarrá-lo é perfeito. Terminei a sessão querendo rebobinar a fita (que anacronismo!) e assistir a tudo novamente. As horas voaram.

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A vida como combustível para a dramaturgia

Se para mim, enquanto crítico de cinema e espectador, a terceira história não provocou danos, o mesmo não pode ser dito em relação ao elenco do filme La Flor. As atrizes estavam cansadas e o diretor decidiu dar uma folga e diminuir drasticamente o tempo delas em cena. Numa trama completamente metalinguística, logo nas primeiras tomadas, visualizamos as quatro discutindo com Mariano Llinás e uma produtora que acabou de ser contratada. Em um jogo de faz de conta, ali, elas são Carricajo, Paredes, Gamboa e Correa. E é incrível perceber como uma situação real, que poderia ter causado grandes problemas, serviu de matéria-prima para a dramaturgia. É nessa hora que o diretor reafirma toda aquela vontade antiga de contar histórias de um jeito diferente, não tão normal ou tradicional.

M. Night Shyamalan e Jean Renoir

Resolvida a contenda no set de filmagem, Llinás e uma equipe de três técnicos saem atrás de imagens de árvores. Ipês vermelhos, ciprestes e o que mais aparecer pela frente interessam. Dando continuidade ao exercício de metalinguagem, o cineasta tem uma obsessão: fazer um filme em que as árvores se revoltam contra a humanidade. Acontece que essa obra já existe, informa alguém, “Fim dos Tempos” (2008), de M. Night Shyamalan.
Uma pergunta bastante pertinente, nesse instante, é se o diretor, de fato, não conhecia o longa-metragem em questão. Acreditando-se na excentricidade retratada no primeiro parágrafo, acho possível, sim, que ele não conhecesse e creio também que houve um reaproveitamento da ideia original. Só que esse não é apenas um enredo metalinguístico, havendo um elemento, digamos, fantástico envolvido na trama. Antes do final, as quatro estarão de volta, aprontando suas bruxarias e encarnando uma personagem antes maldita, mas hoje completamente ressignificada.
No sétimo dia, Deus descansou. Transportada para a realidade fílmica, essa frase ficaria melhor assim: no quinto capítulo, elas descansaram. É na história de número cinco que as atrizes realmente descansam. Em nenhum momento temos qualquer vislumbre delas. Esse episódio de La Flor é uma homenagem a um velho filme francês, segundo palavras do próprio realizador. No caso, “Um Dia no Campo” (1946), um média-metragem, de 41 minutos, de Jean Renoir, justamente uma de suas principais referências. A produção é tão caprichada quanto as demais e a fotografia, em parte por ser a única preta e branca, se destaca. Entretanto, a sensação de que “algo” está faltando é bastante perceptível. E não é preciso pensar muito para chegar à conclusão de que esse “algo” são elas, as flores. Após 12h08min de sessão, já está claro que Carricajo, Paredes, Gamboa e Correa são a alma do projeto.
La Flor filme argentino 14 horas crítica

E chegamos ao fim…

O sexto episódio é literalmente uma pintura em movimento. Isso porque cada fotograma da magnífica fotografia dessa bela história de empoderamento feminino remete a quadros impressionistas de artistas como Pierre-Auguste Renoir, o pai do Renoir cineasta. A trama é a adaptação de um fragmento do livro – aparentemente fictício – “Memórias de uma inglesa cativa nas planícies da América do Sul”, escrito pela professora Sarah S. Evans e publicado no Reino Unido, em 1900. Nela, acompanhamos quatro mulheres – a autora (Elisa Carricajo) e suas três companheiras, identificadas somente como la niña mestiza (Valeria Correa), madre de la niña (Laura Paredes) e mujer criolla (Pilar Gamboa) – em uma corrida desesperada rumo à liberdade. Uma “coincidência” que parece confirmar o caráter ficcional do relato é o fato de que, assim como suas personagens, Correa e Paredes estavam grávidas.

Fora do circuito comercial

Concebido como um longa-metragem de festival, o filme La Flor nunca estreou em circuito comercial. No Cine BH e em outros festivais pelo mundo, ele foi exibido em três sessões, em dias distintos. Assistindo em casa, sujeito às intempéries da rotina, precisei de quatro dias, dois finais de semana. Os cinco dias que separam as minhas sessões particulares passaram vagarosamente. Eu estava ansioso querendo saber como terminaria a aventura daquelas quatro mulheres.
Ao término dessa grandiloquente saga de 13h54min, o filme não saía da minha cabeça. Na verdade, até hoje ele não saiu. Ao escrever este texto, todas as imagens e os detalhes voltaram de uma forma muito clara. Foi bastante prazeroso recordá-lo e redigir cada uma dessas linhas. Igualmente clara, para mim, se tornou a compreensão, tanto sob o prisma do cineasta, quanto do público, da expressão “cinema é como um campo de batalha”.
La Flor filme argentino crítica

Experiência única

Para assistir a uma obra com tal proposta, seja em um festival, seja em sua casa, o cinéfilo precisa de todo um planejamento. Logo, entendo perfeitamente quem tem vontade e meios de ver La Flor, mas acaba adiando essa experiência única. Já para Mariano Llinás, Elisa Carricajo, Laura Paredes, Pilar Gamboa, Valeria Correa e toda a equipe da El Pampero Cine, a batalha foi passar dez anos filmando, gravando quando possível, entre um trabalho e outro.
Então é legítimo, como presenciei outro dia em uma rede social, discutir a validade de um longa com essa metragem, que não dará o retorno financeiro que as outras produções costumam dar. Contudo, pessoas como Llinás e o seu filme La Flor sempre serão necessárias. Afinal, se o cinema é um campo de batalha é porque, em parte, sempre foi um lugar de experimentação, de ousadia. E se não fosse assim algumas obras revolucionárias jamais teriam sido feitas.
Desliguem os celulares e boa diversão.

TRAILER

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FICHA TÉCNICA DO FILME ‘LA FLOR’

Título original do filme: La Flor
Direção: Mariano Llinás
Roteiro: Mariano Llinás
Elenco: Elisa Carricajo, Valeria Correa, Pilar Gamboa, Laura Paredes
Onde assistir ‘La Flor’: site oficial
Data de estreia: sáb, 14/04/18
País: Argentina
Gênero: drama, fantasia, musical
Ano de produção: 2018
Duração: 808 minutos
Classificação: a definir

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
NAN