‘Mães Paralelas’: passado e futuros andam juntos e nós dá o presente
Ana Rita
Lançado no Festival de Veneza de 2021, Mães Paralelas (Madres Paralelas) integra a magnífica filmografia de Pedro Almodóvar e está presente no catálogo da Netflix (junto a grandes filmes do diretor espanhol). A obra possui diversas camadas, mas a central é a maternidade.
Censura
Sabemos que parte da divulgação de um filme é realizada por suas artes e pôsteres, e uma polêmica envolveu o filme durante esses lançamentos de cartazes. No entanto, o Instagram censurou a arte produzida pelo designer Javier Jaén. Com o tema de maternidade, há lógica em associar ao ato de amamentar. E foi a linha de pensamento do artista, que traz na imagem um mamilo no centro com uma gota de leite, tudo enquadrado por um formato oval, como o de um olho.
Posteriormente, a rede social pediu desculpas e a arte voltou à plataforma. Mas a polêmica levantou a reflexão sobre a censura dos corpos femininos (associado na maioria das vezes a um conteúdo sexual) e a pensamentos equivocados e conservadores sobre a amamentação em espaços públicos.
Identidade
O cinema de Almodóvar é um daqueles estilizados que facilmente identificamos devido a sua identidade visual, e claro, os temas femininos que sempre aborda (mesmo sendo um homem). Cores vibrantes, sejam nos cenários como nos figurinos, e sempre, muito vermelho. Nessa obra, temos mais uma ‘característica’ presente em muitos filmes do espanhol, a participação da atriz Penélope Cruz, que interpreta Janis, a protagonista.
Antes de tudo, é preciso dizer que Penélope tem um dos olhares mais penetrantes na história do cinema, com uma simples mirada, a atriz te prende e hipnotiza. E é um ponto que Almodóvar sabe explorar bem, justificando a indicação ao Oscar de Melhor Atriz em 2022.
O papel de mãe
Como já dito, o tema central da narrativa de Mães Paralelas é a maternidade. Janis é uma fotógrafa que dá à luz a sua filha no mesmo dia que Ana (Milena Smit), uma jovem adolescente. Duas mulheres cujos os futuros mesmo diferentes são semelhantes, o de duas mães solteiras. De modo sutil, Almodóvar expõe a percepção de sofrimento e felicidade que o parto pode gerar, a dor, a solidão e o ato de trazer ao mundo um ser humano.
As mães acabam se aproximando e trocam seus telefones, afinal, estão em uma situação parecida, então por que não manter o contato? E assim vamos acompanhando paralelamente as vidas dessas duas mulheres e suas filhas, mas com um foco em Janis.
Ana e sua mãe
Ana mora com sua mãe, Teresa, sendo (ou não) seu apoio nessa nova fase. Teresa é uma atriz, e é mostrado seu teste para uma peça, no qual ela fará uma mulher solteira, aquela julgada e excluída pela sociedade, sofrendo a pressão para formar uma família, se casar. Mesmo nesses momentos em que temos como foco uma determinada cena ou ação, Almodóvar consegue trazer de forma sutil, natural e não clichê certas reflexões sobre a situação da mulher na sociedade, e o padrão pré-estabelecido, que mesmo em 2021 é cobrado de nós.
Janis e seu trabalho
Janis é fotógrafa e cuida de sua filha enquanto trabalha. A mãe multifuncional que se desdobra em mil para dar conta de tudo. Há quem veja isso como heroísmo, algo louvável. E de fato é, mas será que deveria ser assim?
Nossa sociedade enxerga o esforço descomunal da mulher (que ainda é pressionada para isso) em formar uma família e criar seus filhos, entretanto a recebe apenas com um ‘parabéns’ por isso, não há apoio ou aparato para isso. Temos mais tentando construir suas carreiras e criando seus filhos.
Responsabilidade paterna
Mães Paralelas inicia com Janis em seu trabalho conhecendo Arturo, um arqueólogo que fará parte de uma revista. Motivada pela história apagada de sua família, Janis conta a Arturo sobre seu bisavô e uma fossa fruto da ditadura espanhola com o Regime de Franco, na qual civis foram enterrados sem conhecimento de suas famílias, e muitos não puderam se despedir. Nisso, os dois se envolvem, gerando Cecília, filha de Janis.
Notem que digo filha de Janis e não de Arturo, uma vez que esse se ausenta da sua responsabilidade paterna. Ele é casado com outra mulher, que luta contra um câncer. Quando está por Madri, após Janis dar à luz, ele liga para saber se pode visitá-las e conhecer Cecília.
Abandono paterno
Essa questão da falta de responsabilidade paterna pode ser facilmente conhecida como ‘abandono paterno’. Mesmo nossa sociedade sendo patriarcal, com o homem à frente de tudo e todas as decisões, essa sua posição de poder também o dá ‘privilégios’. Como ausentar-se da responsabilidade em ser pai, mesmo sendo, deixando assim, os cuidados na criação dessa criança para a mãe. Afinal, esta, desde sempre, aprendeu a função de ser mãe, nascemos com o ‘instinto materno’. É claro que digo isso com ironia, uma vez que a concepção machista que gera esse problema cultural parece ser vista por muitos como fato verdadeiro.
No Brasil, assim como no mundo, o abandono paterno é uma realidade de muitos, deixando crianças e adolescentes crescendo sem pai, abandonados, e recaindo toda a responsabilidade nas mulheres que precisam criá-los sozinhas e ainda trabalhar para sustentar a casa.
Arturo e a filha
No instante em que Arturo vai fazer a visita a Janis e Cecília, Almodóvar faz um corte no tempo e retoma para quando Janis falou sobre sua gravidez. Claro que Arturo não quer a criança, e a fotógrafa argumenta que está completando 40 anos, já está passando do tempo. Com a responsabilidade de uma relação fora do casamento, Janis no momento da conversa ‘libera’ Arturo de toda a responsabilidade, e continua: sigo a tradição da minha família; vou ser mãe solteira, como minha mãe e minha avó; o bebê é problema meu.
Quando o arqueólogo conhece a filha, diz não reconhecer como filha, seus traços físicos fazem com que Arturo não acredite que Cecília seja sua filha. Janis chega a mencionar que podem ser traços de seu avô, o qual também não conheceu. Desse modo, o diretor começa a plantar na cabeça do espectador essa necessidade de conhecer nossos ancestrais, e assim, conhecer sua história. No entanto, Arturo pede o teste de paternidade.
Ana abandonada
Saindo do núcleo de Janis, na história de Ana, há um certo abandono de responsabilidade também de seu pai. A jovem cresceu com seu pai, e no momento que descobre sua gravidez, é mandada para a casa de sua mãe. Com a separação de Ana e Teresa, o contato mãe e filha não foi estabelecido. Teresa cuidava de sua carreira e acredita não ter instinto materno. Com essa distância, compreende como falha com Ana. Além de tudo, a filha de Ana foi gerada a partir de um estupro coletivo, não sabendo assim quem é exatamente o pai da criança. E com a preocupação da família em esconder o caso e não causar escândalo, quem precisa se isolar e se afastar de tudo é a jovem.
Observando de modo geral essa participação paterna em diversas histórias, notamos facilmente que são problemas comuns. Tudo para além dos diálogos, sendo tudo feito com naturalidade. São frases até banais do assunto, que poderia ser visto como caricato, porém, que é tão real quanto habitual em nossa sociedade.
Genética e ancestralidade
Com o crescimento de Cecília, características físicas e genotípicas vão se tornando mais evidentes, como diz Janis, a criança ‘está cada vez mais étnica‘. Isso desperta a curiosidade da mãe, seria isso uma conexão com os homens de sua família que não pode conhecer, como seu avô. É como se essas características que se formam revelassem aspectos dos homens da família que são desconhecidos.
Partindo do pedido de Arturo, Janis resolve fazer um teste genético e descobre que Cecília não é sua filha, o que justifica essas diferenças físicas pela etnia. Como característica forte, as trilhas sonoras nos filmes de Almodóvar, em Mães Paralelas, a tensão de Janis com a descoberta é intensificada, e por esse meio sonoro, a solidão da mãe é também enfatizada. A filha que está criando não é sua, mas um forte laço foi criado.
Trocas
Mantendo contato com Ana, a suspeita de Janis é óbvia. Entretanto com a descoberta, ela tenta se esconder, não quer perder sua filha, não encarar a realidade e proteger seu amor. Ana acaba voltando para sua vida, consegue uma trabalho ao lado da casa da fotógrafa.
No reencontro, a jovem conta que sua filha teve uma morte súbita, morreu dormindo. Claro que isso surte grande impacto em Janis, mesmo sem a certeza, o bebê falecido pode ser sua filha biológica. Como forma de aliviar a culpa que Janis sente, a fotógrafa convida Ana para morar com ela e cuidar de Cecília, mas sendo um trabalho.
Nesse momento, tem-se o clímax dessa narrativa que envolve Ana e Janis. As filhas trocadas, as duas mães solteiras que sofrem nesse mundo do patriarcado. A conexão pelas filhas que é mais forte do que Ana sabe. As duas se aproximam e se envolvem, Janis ensina Ana a cuidar da casa, a cozinhar e assim, surge também um relacionamento amoroso.
Após revelado a Ana sobre Cecília ser sua filha, em um momento de forte drama e tensão, a jovem decide partir com a bebê.
Passado e futuro andam juntos
Mães Paralelas é muito mais do que uma história sobre mães solteiras na Espanha e a troca de suas filhas na maternidade. É também sobre conhecer suas origens, sua ancestralidade. Compreender que identidade é conhecimento de história, que família é um dos indicativos disso, mas que família também se constrói.
Janis liga para Arturo. Tudo sobre a filha dos dois é revelado e, agora, o arqueólogo reconhece seus traços. A partir desse ponto, tudo se volta para a busca da fossa onde está o bisavô de Janis, essa sede por conhecer a história da sua família e honrar as pessoas que morreram na ditadura que gerou a Guerra Civil da década de 30 na Espanha. Um momento revoltante que só resultou em guerra e perseguição, destruição de famílias, bem como, a exposição da falta de humanidade que o ser humano é capaz de ter.
Com entrevistas e coletas, Arturo vai continuando sua pesquisa com a ajuda de Janis, que voltam a cidade de sua família. Por meio dessas escavações, que se dará, na medida do possível, a dignidade a essas famílias e pessoas mortas na ditadura.
Poesia de Almodóvar
Assim, trazendo a história de mães, Almodóvar expôs de forma sutil alguns fortes impactos que esse regime autoritário deixou; bem como o sentimento de esperança com possíveis respostas. É o cruzamento de histórias individuais com a coletiva, a história de famílias, pessoas e comunidade.
Por fim, o diretor espanhol conclui com uma cena poética com uma dialética entre os corpos vivos e os restos encontrados. Uma liberdade que enfatiza o caráter de identificação que se pode ter ao conhecer a nossa ancestralidade, saber de onde viemos. Afinal, é a história daqueles vivos também, são eles ali indiretamente.
“Não existe história muda. Por mais que a queimem, por mais que a quebrem, por mais que mintam, a história humana se recusa a ficar calada”- Eduardo Galeano
E, assim, Pedro Almodóvar encerra Mães Paralelas.
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