Néstor Guzzini

Néstor Guzzini, ator uruguaio (foto: Alvaro Tallarico)

ENTREVISTA | “Cultura não dá comida, mas fornece liberdade”, diz o ator Néstor Guzzini

Alvaro Tallarico

Néstor Guzzini está sentado no saguão de um cinema em Botafogo, Rio de Janeiro. Em cima da mesa, uma garrafinha vazia de refrigerante. Néstor Guzzini é hoje um dos principais atores do Uruguai. Por sua atuação como Ruben, no filme Meu Mundial (estreia em 19/09), ganhou o prêmio de Melhor Ator no Festival de Gramado. O filme também participou dos festivais Work-in-progress Award, em Guadalajara FICG, onde ganhou três prêmios de desenvolvimento; da Market Premiere/Marché du Film, em Cannes, e fez sua Première Internacional no Busan FF, da Coréia do Sul.

O BLAH!ZINGA foi convidado para entrevistar Néstor Guzzini, que falou com muita sabedoria sobre futebol, cinema, Brasil e muito mais. Confira!

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BLAH!ZINGA: Primeiramente, parabéns pelo seu trabalho, sua atuação e por seus prêmios, muitos.

Néstor Guzzini: Muchas gracias, muchas gracias (agradece humildemente algumas vezes).

BLAH!ZINGA: Porque o futebol é tão importante para nós e para o filme?

NG: Começo pela mais difícil, para mim… Creio que sou muito aficionado pelo Peñarol (equipe de futebol), do Uruguai. Mas, para mim, o futebol é uma forma de nos relacionarmos. Foi uma forma de me relacionar com meu pai, um vínculo que ajudou para que eu tivesse relações mais sadias na minha vida. Às vezes no futebol, e é verdade, há questionamentos pelos muitos negócios ao redor, mas o futebol em si, como esporte, como questão coletiva, e energia, é algo muito lindo. Na minha família tirando as frustrações e as angústias por quando perdemos (risos) consegui um vínculo muito sadio com meu pai e agora com meus sobrinhos. Fortaleceu nossas relações. Me ajudou a controlar as frustrações.

Claro, entendo que através do futebol muitos tem uma atitude violenta, mas, pelo que me parece, não é um problema do esporte, mas sim dos seres humanos. Depois, creio que é um tema universal, por isso este filme, pois tem outros tipos de componentes que trazem algo menos lúdico, que (o futebol) termina sendo a única oportunidade para determinadas crianças e adolescentes escaparem de realidades com muitas dificuldades. Aí o lúdico, às vezes, lamentavelmente, se perde e termina sendo – não é casualidade – que a maioria dos jovens que jogam futebol vem de locais com muita dificuldade econômica. Tem o lúdico e isso é sadio, mas há também essa possibilidade de escapar da realidade, da falta de oportunidades.

BLAH!ZINGA: Como no filme.

NG: Certamente, isso sim é o que transcende a essência do jogo. Não que me pareça triste que seja uma oportunidade, mas é triste que seja a única. Se isto não me salva, não me salva nada, isto é triste.

BLAH!ZINGA: E é um problema de toda a América Latina, não?

NG: Claramente, evidentemente há uma questão de escala, no Uruguai somos muitos menos, mas é assim. Essa pressão… no filme esse pai tem um papel de consciência, virtude, dar mais possibilidades, mas se vê em uma realidade tão complicada com sua família que é difícil dizer não para algumas oportunidades. Porém, um adolescente nunca poderia ser o sustento econômico de toda uma família. Mas, bom, não é tão fácil a história, não é fácil.

BLAH!ZINGA: E você ainda segue trabalhando com contabilidade?

(risos, Néstor claramente não esperava essa pergunta)

NG: Bom, em 2010, faz uns anos, estava decidido a abandonar definitivamente, porém ainda tenho um vínculo, bem pequeno, hoje. Ainda me custa não ter algo minimamente… Mas, bom… a prioridade é atuar (diz com um largo sorriso).

O brasileiro Roney Villela contracena com Néstor Guzzini (divulgação: Primeiro Plano)

UM FILME É FORMADO POR TODO UM ELENCO

BLAH!ZINGA: Como é a responsabilidade de ser considerado um herói do cinema uruguaio? Uma responsabilidade muito grande, não?

(Néstor fica sem graça)

NG: Não, não, não creio que seja. Há muitos atores importantes no Uruguai. Porém, sim, há uma coisa que não posso negar que nos últimos anos tive muita exposição, muitos trabalhos. Contudo, nunca se atua sozinho. Sempre atua por outros. Um filme é formado por todo um elenco, uma história. Sempre está representando não só a si mesmo, mas sim seus colegas, assim tem sido comigo. Não se atua por um só, mas sempre por um coletivo.

BLAH!ZINGA: Como no futebol?

NG: Exato, exato. Como em qualquer forma de expressão. A responsabilidade que se sente é que sempre temos que tentar entregar o melhor. Porque há uma história e, no caso, para um filme são muitos anos de trabalho. Uma produtora, um diretor… Na América Latina, no Uruguai, dependemos muito das coproduções, já entramos em uma etapa da história bastante desenvolvida. Então todo esse tempo, essa história, esse filme, essa é a responsabilidade, mas temos que encarar com a maior naturalidade possível.

BLAH!ZINGA: Para você, Néstor, qual a magia do cinema? A magia que tem essa arte?

NG: Bom… (pensa…) Creio que… agora no Uruguai começaram a fazer séries e vou participar de uma das primeiras, em dez capítulos, “Todos Detrás de Momo”, estou bem contente, mas acredito que os filmes são para serem vistos no cinema. Porque realmente, mantém vivos os filmes. Nenhuma função é igual a outra, não existe. No teatro isso é garantido, nenhuma exibição é igual a outra, e no cinema também. Não é o mesmo ver um filme sozinho em casa e ver numa sala de cinema. É outro tipo, e não é que seja melhor nem pior, é outra experiência.

Acredito que o cinema vai sobreviver por causa disso. No meu caso, sem ter a consciência que atuaria um dia, sempre senti amor pelo cinema, os videoclubes no Uruguai eram meus lugares favoritos. Sempre gostei de ir ao cinema com meu pai, sempre me deu a possibilidade de ter uma consciência de que há um mundo que depende somente de mim, meu mundo, minha fantasia, na minha cabeça. O mundo exterior não vai me dominar, nesse momento, na minha cabeça, essa história… não dependo de nada, é minha fantasia. Então me dá muita liberdade ver um filme.

Acredito que a importância da cultura, cinema ou qualquer outra forma expressão artística, não vai dar comida para uma criança com dificuldades, mas fornece a possibilidade de sentir uma liberdade durante esse momento. Então acredito também que é muito importante que a escola pública e os estudos sejam acessíveis a todas as crianças, e a cultura também deve ser acessível, para que as crianças tenham a oportunidade de ter esse espaço de liberdade. Porque nesse momento, nesse minuto não há pressão exterior, não há fronteiras. Está vendo uma história e é livre para pensar e imaginar o que quiser. Isso não é pouca coisa.

BLAH!ZINGA: Seu personagem no filme, Ruben, quem é Ruben e quem é Néstor?

(Néstor dá três risadas).

NG: Bom, claramente Ruben tem um grau de inocência que faz tempo que não tenho, mas tão pouco não sei. Em Ruben tem coisa minhas, mas foi um trabalho no qual tive que… expressar muito mais com a presença do que com as palavras. É um personagem muito menos verborrágico do que outros que vivi, e foi uma experiência muito linda, me obrigou a colocar-me em um lugar onde a ferramenta era mais a sensibilidade do que a palavra. Foi um trabalho muito intenso, de muita contenção. Há momentos em que Ruben explode, mas para isso acontecer, tinha que estar contido antes. Vemos sua frustração, contudo, dentro dessa determinada frustração, arrebenta e volta a se conter. Um trabalho muito interessante.

PARA VENCER NÃO BASTA JOGAR

BLAH!ZINGA: O subtítulo do filme diz que “para vencer não basta jogar”. Se para vencer não basta jogar, o que é necessário para ser um vencedor?

NG: Não sei tão claro o que é um vencedor, não sei.

BLAH!ZINGA: Para muitos você é um vencedor. Ator premiado e respeitado.

NG: Sim, claro, mas creio que todos temos algumas coisas que nos fazem sentir em certo momento do dia que ganhamos um pouco, mas um pouco também perdemos. Ou não?

BLAH!ZINGA: Sim, sim, claro. É impossível ganhar sempre.

NG: Sim, agora estou aqui, contente pelo filme, mas em uma hora algo pode acontecer que pode ser… não sei, a resposta pode ser demagógica, mas me sinto mais vencedor quando vejo meu filho do que em qualquer outro momento.

BLAH!ZINGA: Como é sua vida no Uruguai hoje?

NG: Muito centrada no meu trabalho e no tempo que me leva tentar criar meu filho. Não que eu seja um pai modelo, reconheço que é algo belo, porém não é fácil, tem que ter tempo para pensar sobretudo nos impulsos, o que mais me custa é lhe dar liberdade, é o mais difícil, porque me dá medo.

BLAH!ZINGA: Complicado neste mundo, não?

NG: Sim, mas é a principal missão que devo cumprir. Tenho que descobrir a melhor ferramenta para fornecer a ele, o mais difícil é lhe dar a liberdade que precisa para gerar confiança. Tentar que meus medos não lhe absorvam. Eu tento controlar meus medos como posso, não é simples, medo dele ser infeliz, de sofrer bullying…

BLAH!ZINGA: Muito como Ruben no filme.

NG: Claro, isso me toma um tempo, mas depois a vida é como em todo o mundo. Tenho a vantagem desse trabalho me dar tempo de estar com ele em casa – agradeço por isto. Ele me acompanha nos ensaios e provas de figurino, mas, bom, basicamente é isso, minha vida transita nisso. E, o que ocorre na vida de ator, tenho a sorte de ter muitos projetos que ali estão, mas também pedem certa espera e estar preparado.

BRASIL E URUGUAI

BLAH!ZINGA: E o que pensa do Brasil? O que é o Brasil pra você? Um país continental, meio louco, ou só mais um da América Latina?

NG: Por questões lógicas temos muito mais vínculo com Brasil e Argentina. É muito simples, cruzamos a rua e estamos no Brasil e, no caso da Argentina, cruzamos um rio, uma ponte, e estamos lá. Minha primeira viagem, em 1977, foi em um chevette laranja. Fui até Gramado, Canela, Pelotas e todo Rio Grande do Sul. Depois voltei e fomos a Florianópolis muitas vezes. Vim para trabalhar em Porto Alegre e também para festivais. É um lugar que me sinto muito confortável.

Mas, para ser sincero, quando penso no Brasil, penso em férias. Claro, venho para trabalhar às vezes. Depois, o que sim é verdade é que não temos a dimensão do mundo Brasil. Explico, é muito difícil ter essa dimensão, não temos contato com toda essa dimensão. Podemos tentar entender, lemos, sabemos pelas notícias. Muito difícil escolher que notícias ler (risos). Não é fácil. Estamos inteirados, mas é muito difícil fazer ideia de algo tão enorme.

BLAH!ZINGA: Ah, para a gente também.

NG: Sim, imagino. Uruguai é pequeno e está todo centralizado em Montevidéu. Conheço todo o interior do Uruguai, mas conheço por fora. Conhecer, conhecer mesmo, conheço mais ou menos, mais para menos. Agora imagina o Brasil… Agora, lamentavelmente, esses incêndios na amazônia, é difícil ter ideia de algo tao imenso, mas é triste. Imagino que para vocês também, se relacionar em um contexto tão grande, com tanta gente, não deve ser fácil.

BLAH!ZINGA: Não é, não é fácil e agora está sendo um momento muito difícil.

NG: Sim, claro, um momento… (hesita). Espero que isso mude rápido.

BLAH!ZINGA: Nós também. Gratidão pela sua simpatia e eloquência.

UMA DESPEDIDA DE SORTE

A entrevista acabou e pedi para sacar umas fotos. Saímos juntos andando por Botafogo. Néstor Guzzini queria comprar algo para seu filho. Mais uma vez ficava clara a importância do garoto. Falou sobre o frio que estava no Uruguai (3 graus) na semana passada. Comentei que conhecia aquele cortante frio. Elogiei os uruguaios por serem sempre cordiais e como foi fácil conseguir carona por lá. Desde um velhinho que levava cabras, até um casal que, sem medo algum, me pegou no meio da estrada. Fui no banco de trás junto com o bebê deles que brincava com um boneco do Wolverine. Nem lugar tinha para ficar, mas eles procuraram comigo por dentro da cidade de Punta del Diablo e me deixaram em frente a um hostel barato e bom.

Néstor Guzzini gostou de ouvir a história. Pude perceber seu orgulho em um leve sorriso. Conversamos um pouco sobre Pepe Mujica e como hoje, no Uruguai, a situação política também está diferente. Aproveitei e perguntei mais sobre a série que participou “Todos Detrás de Momo“, mas me disse que vai ser difícil de conseguir ver no Brasil. Em frente ao shopping, me deu um abraço e se despediu no melhor estilo uruguaio: “Suerte”.

Sorte foi poder conversar com você, Néstor. Vaya com Dios.

Néstor em ‘Todos Detrás de Momo” (divulgação: TV Ciudad/Uruguai)

Alvaro Tallarico

Jornalista vivente andante (não necessariamente nessa ordem), cidadão do mundo, pacifista, divulgador da arte como expressão da busca pela reflexão e transcendência humana. @viventeandante
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