O Fim da Viagem, O Começo de Tudo

‘O Fim da Viagem, O Começo de Tudo’ | CRÍTICA

Karinna Adad

Eu já recomendaria O Fim da Viagem, O Começo de Tudo (Tabi No Owari Sekai No Hajimari), de Kiyoshi Kurosawa, pelo fato de se passar no Uzbequistão. Afinal, a grande maioria da população brasileira – e nesse grupo me incluo – não sabe nada ou quase nada sobre esse país. Entretanto, o filme ainda traz várias camadas de complexidades que perpassam e marcam a vida das mulheres, seja na vida pessoal ou na profissional.

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A trama

Yoko (Maeda Atsuko) é uma jornalista japonesa que está no Uzbequistão para gravar uma série de vídeos mostrando a cultura do país. São temas que envolvem desde a culinária até as opções de divertimento. Apesar de não ser o trabalho dos sonhos, ela é comprometida ao extremo e, ao longo dos dias, vivencia as experiências mais degradantes que se possa imaginar, sem, contudo, revoltar-se ou desistir do emprego. Acompanhada por uma equipe totalmente masculina em uma nação marcadamente machista, Yoko é diversas vezes atravessada por homens que ora a menosprezam, ora a ignoram, ora a exploram.

Assédio moral e solidão feminina

Durante O Fim da Viagem, O Começo de Tudo, duas situações em especial me chamaram a atenção devido à ocorrência constante e perturbadora: o assédio moral por parte dos colegas de trabalho e a dimensão da solidão feminina. O filme começa mostrando a comunicação nada fácil entre a jornalista e um uzbeque. Yoko parece perdida e desesperada enquanto o homem fala, gesticula e aponta para uma moto. Por fim, os dois montam na moto e seguem viagem até o meio do nada. A mulher desce e, conforme ela corre cheia de sacolas numa paisagem composta por areia e mato, vemo-la se aproximar de um grupo de três homens. São os seus colegas de profissão, que já preparados para começar a gravação, foram incapazes de avisá-la e de esperá-la para irem juntos.

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Superado esse primeiro inconveniente, Yoko é novamente colocada à prova quando precisa experimentar um prato típico uzbeque e não deixar transparecer para o telespectador que o alimento está impróprio para consumo, uma vez que não está totalmente cozido. A insensibilidade do diretor Yoshioka (Shota Sometani) é implacável nessa situação e em tantas outras. No entanto, a conjuntura que mais causa desconforto e repulsa, apesar da comicidade da cena, é a gravação no parque de diversões. Afinal, a jornalista é colocada para filmar em um brinquedo que, pelos alertas do responsável, não é adequado para todo tipo de pessoa. Em uma cena que retrata o suprassumo do assédio moral, Yoko faz três filmagens no brinquedo mesmo demonstrando – vocal e fisicamente – desespero e enjoo no término de cada uma.

Machismo e desconhecimento

Como se não bastassem as exigências estafantes feitas pelo diretor, que não contam com a interferência de nenhum dos outros homens que compõem a equipe, a japonesa experiencia situações desafiadoras no país estrangeiro. A presença de Yoko não apenas atiça olhares masculinos indiscretos que a deixam constantemente desconfortável nos espaços públicos, como também enseja atitudes e comentários machistas por partes dos locais. Numa dessas ocasiões um pescador grosseiro e de má vontade decreta que o não aparecimento de um peixe famoso na região se dá porque a jornalista está presente e “peixe odeia cheiro de mulher”.

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Não à toa, Yoko é reservada e solitária, e sobre ela não sabemos muito. O pouco que nos é permitido conhecer ocorre nos poucos minutos que marcam a conversa com o intérprete uzbeque Temur (Adiz Rajabov). Nela, a jornalista revela seu grande sonho de ser cantora e que, ao contrário do que se é esperado de toda mulher, ela não está tão certa quanto ao desejo de se casar com o namorado.

Cultura diferente, mas desafios iguais

Enfim, O Fim da Viagem, O Começo de Tudo mostra com delicadeza e apuro os desafios que uma mulher ainda tem que enfrentar pelo simples fato de ser mulher. E, nesse intento, somos conectadas com Yoko mesmo esta pertencendo a uma cultura muito diferente da nossa. Para conseguir chegar a um resultado que leva à reflexão, muito mais do que à busca de culpados, Kurosawa dilui a dureza e a dramaticidade dos temas abordados com cenas entremeadas por comicidade. Em resumo, o filme acompanha uma figura feminina que, apesar da aparência frágil e vulnerável, vai, por meio dos desafios impostos, decidindo o caminho da sua vida sem a interferência de nenhuma pessoa além dela mesma.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Tabi No Owari Sekai No Hajimari
Direção: Kiyoshi Kurosawa
Roteiro: Kiyoshi Kurosawa
Elenco: Tokio Emoto, Atsuko Maeda, Ryo Kase
Distribuição: Zeta Filmes
Data de estreia: qui, 12/09/19
País: Japão, Uzbequistão, Catar
Gênero: drama
Ano de produção: 2019
Duração: 120 minutos
Classificação: a definir

Karinna Adad

Tranquila, mas multitarefada. Sou daquele tipo de pessoa que sempre está fazendo alguma coisa e descobrindo outras tantas pelo caminho. Topo qualquer parada desde que tenha prazer nela e uma das que por mais tempo vem me enchendo de alegria é a escrita. E como boa leitora consigo escrever sobre quase qualquer coisa, por mais que, como uma cientista social em formação, não consiga deixar de fazer agir meu raio problematizador nos meus textos.
NAN