Ataque dos Cães

O Velho/Novo Oeste em ‘Ataque dos Cães’

Vinícius de Lacerda Mesquita

No último domingo, aconteceu a premiação do Globo de Ouro. Entre tantas polêmicas e perda de credibilidade com casos de racismo e corrupção, Ataque dos Cães, da diretora Jane Campion, ganhou na categoria Melhor Filme de Drama. Mais uma vez, uma superprodução com o selo Netflix de qualidade conquista um espaço importante.

O filme, em si, é um retrato muito bem desenvolvido de coisas que parecem estar sempre nas entrelinhas. Parece, como vários analistas já comentaram, uma espécie de terror psicológico, um suspense de muitas especulações e pouca ação propriamente dita. O que torna a experiência ainda mais rica. Baseado em obra homônima do escritor Thomas Savage, a produção provoca uma cutucada com bastante pus em temas tabus da sociedade.

Com Benedict Cumberbatch e Kirsten Dunst no elenco principal, a trama por si só teria todos os elementos para ser mais um filme sobre o Velho Oeste americano. No entanto, o filme nos surpreende com plot twists perturbadores e que revelam as extensas camadas de sua narrativa ousada e cheia de simbolismo. A julgar pelo próprio título. Ora inspirado na Bíblia, ora uma metáfora da condição humana. Tudo num clima subliminar entre o que pode ou não acontecer (e ter acontecido).

Go West’

Como todo bom filme de faroeste, a vida dos cowboys é retratada com muitos estereótipos. Desde a bravura de viver entre os animais, bem como o machismo e a misoginia clássicos do gênero. A falta de trato social e de sensibilidade são imagens que ficaram no imaginário das pessoas acerca da vida do homem simples do campo. No filme Ataque dos Cães, essa visão é contrastada com figuras que quebram esse paradigma, demonstrando o quanto a delicadeza e emoção também podem ser sentimentos masculinos.

A dureza do gado sendo tocado revela que um ambiente áspero e sem espaço para moleza. Mas, a vida não pode ser apenas de frieza e amargura. Por isso mesmo, a história se passa num ambiente desértico, onde se acostuma facilmente com a solidão. Principalmente a do homem que vive para o trabalho e para o legado dos pais.

Jung: a construção da persona x o embate com a Sombra

Sobre isso, o velho (sem trocadilhos) Jung já nos alertava. Viver tanto tempo sob uma mesma persona carrega o peso de uma sombra tão imponente e ameaçadora quanto. Aquela nada mais é que um contrato social entre indivíduo e sociedade/cultura, as quais exigem papéis sociais que colocam a função acima da individualidade. Por outro lado, a segunda é tudo aquilo que reprimimos de nossa consciência, uma espécie de dupla (ou múltipla) personalidade na qual tudo é varrido para debaixo do tapete.

A julgar também pelo desenrolar da história, percebe-se como a direção e o roteiro tiveram a sagacidade de conectar uma história num tempo passado aos fatos do presente. A saber: o excesso de masculinidade, que se torna cada vez mais tóxica, provoca um embrutecimento do homem em relação ao mundo. Muitas vezes, esse exagero de testosterona esconde um universo inteiro de questões e complexos mal resolvidos que, em alguns casos, liga-se à sexualidade. Isso porque muitos homens não sabem muito bem como lidar com questões ligadas ao seu desejo, aos instintos e ao próprio corpo, o qual sofre tanto quanto a mente.

Traumas ficam apenas no passado?

Também há outra questão muito bem desenhada e representada de uma maneira fidedigna: as consequências dos traumas. Para Jung, a questão não é pelo que passamos, mas como isso ainda nos afeta de maneira a paralisar e nos fazer retroceder em alguns momentos. No filme, há elementos o tempo todo nos dizendo que algo está prestes a acontecer, um tipo de premonição, dada a situação mental e de saúde dos personagens, quase um destino certo por assim dizer.

O Veredito

Não me atrevo a dizer muitos detalhes sobre Ataque dos Cães para não estragar as reflexões que cada pessoa possa ter ao assisti-lo. Um drama ousado, cheio de reviravoltas e que coloca em cheque o papel masculino dentro de um mundo cada vez mais exigente, difícil e sem espaço para homens ‘raízes’ à moda antiga (uma excelente perspectiva, por sinal).

No fim, tudo se resume a assimilar tais partes de nossa psique inconsciente, sem o risco de nos deixamos dominar por aquilo que nos recusamos a encarar.

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Vinícius de Lacerda Mesquita

Vinícius de Lacerda é formado em Letras e professor de língua portuguesa. Atualmente, é pós-graduando em Psicologia Junguiana, poeta, compositor, redator e entusiasta da Cultura Pop.
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