‘Pearl’ ou como nascem os monstros
Taynna Gripp
“Como é perversa a juventude do meu coração
Que só entende o que é cruel
O que é paixão”
(Belchior)
Quando fez barulho com sua performance nos cinemas e no streaming, “X – A Marca da Morte” deixou na cabeça de todos que tiveram o privilégio de ver a atuação de Mia Goth um pouquinho das motivações que levam um casal de idosos conservadores a atacar os jovens que vão até sua propriedade gravar um filme pornô.
Diferente do comum, “X” é um prelúdio muito bem organizado do segundo filme da saga, Pearl, que estreia no cinema nesta quinta-feira (9). É quando finalmente entendemos toda perversão e ódio por trás da idosa, e diversas referências são explicadas. Mais ainda: nesta obra que entramos dentro da mente de uma assassina extremamente cruel.
Se o primeiro filme te faz ter nojo da personagem, o segundo nos deixa incertos com o sentimento de empatia e compaixão por uma menina que queria o mundo e foi podada de tantas formas que seu gesto mais óbvio foi massacrar qualquer coisa que aparecesse em seu caminho.
Pearl, ao ser apresentada em seu primeiro ato, é apenas uma jovem bela e sonhadora, mas, tão logo sua dança começa, ela é duramente repreendida pela mãe severa. À moça não cabe o sonho, o belo, muito menos a dança.
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Roupas
A personagem que rouba os antigos vestidos da mãe, está usando um tom de rosa claro e feminino, gritando ao nossos olhos que quer ser vista assim: delicada e perfeita. Mas ela não pode ser essa pessoa, não há tempo para isso quando você está no meio do Texas, em plena Primeira Guerra Mundial, tendo que cuidar de um pai debilitado enquanto ajuda a mãe a manter a fazenda funcionando.
Seu figurino, então, se torna simples e desprovido de qualquer teor sexual. É um macacão surrado que a transforma na mais comum das criaturas, o oposto de tudo que Pearl deseja ser. Sua única fuga desse mundo imposto quando seu marido foi para a Guerra e a deixou ali é ir até a cidade comprar os remédios do pai. Afinal, lá é possível roubar umas moedas do troco e ir até ao cinema, se deslumbrar com as dançarinas da tela, com o frescor que só um bom filme pode nos causar, nos permitindo viver uma outra vida por pelo menos algumas horas.
Cruel e doce
Por mais que a personagem já apresente alguns sinais de crueldade, ela também apresenta uma doçura quase pueril. É como se Pearl fosse só uma criança que ainda não tem total domínio de seus sentimentos e ações. Ao ser notada por um homem, tudo muda. A jovem, então, ganha conhecimento de que sua vida pode ser diferente: de que não só pode ser como já é uma mulher; que pode se tornar uma estrela e dar adeus à existência medíocre que tanto a apavora.
Em uma análise rasa, Pearl é só uma personagem desprovida de culpa. Mas, ao olhar profundamente a protagonista apresentada, cada uma de suas camadas, o que se enxerga é uma menina desesperada para receber amor, ser vista como um ser único, ser notada.
Isso fica claro, principalmente, na magnífica cena do monólogo final, quando ela desabafa com sua única amiga, cena que, por si só, já valeria uma indicação ao Oscar de melhor atriz à Mia, esnobada pela Academia.
Camadas profundas
Existem muitas camadas no próprio longa, inclusive referências ao “Mágico de Oz” estão por toda parte, desde o cenário, no Texas – que se parece, obviamente, com o Kansas -, até ao ato de dança com o espantalho, quando a jovem tem sua emancipação sexual compreendida.
A partir do momento em que se descobre mulher, Pearl muda, seus atos já não são tão pueris. Ela agora é dona de si e quer ser também dona de seu destino, fazendo qualquer coisa para alcançar seu objetivo, inclusive tirando do seu caminho quem quer que possa atrapalhar seus planos.
Assim, sem spoilers, Pearl acaba cometendo atos terríveis, mas ainda não é sobre isso que venho discorrer. Quando decide ir à audição que tanto almeja, sua escolha é por um figurino mais vivo, um vestido vermelho. Quanta semiótica na escolha de um único vestido! De frágil e dócil do primeiro ato, ou braçal e rústica enquanto está de macacão, Pearl agora é uma mulher novamente pronta para o amor e, finalmente, para a glória. Ela está segura de si, e ai de quem ousar duvidar disso.
Vulnerabilidade do monstro
Pearl é um filme que me tocou bastante, mesmo que não seja amante do gênero terror. Mas é louvável o quanto é transmitido, ali, na tela, a sensação de vulnerabilidade da personagem. Mesmo quando se transforma em um monstro, existe tanta humanidade naquela personagem que quase nos vemos passando pano para seus atos.
Cito outra vez o monólogo de Pearl com sua cunhada porque, dentro daqueles minutos que vão se passando enquanto ela abre o coração, quase todos nós vemos reflexos de nossos medos e desejos. E fazer com que nos identifiquemos com um assassino, quando todos já sabem do que o criminoso é capaz, é um grande ponto a favor do roteiro e da direção do filme.
Poucas pessoas têm coragem de acessar tão ao fundo da própria alma para ver que em algum lugar precisou fazer escolhas de vida ou morte em prol daquilo que tanto queria. Alguns, mais corajosos ainda, vão admitir que, sim, em um ou outro momento, já desejou não ter escrúpulos. E a morte aqui é metafórica, mas teria sido tão mais fácil isso ou aquilo se, por um acaso milagroso – e tenebroso -, aquilo que nos prende na mediocridade tivesse desaparecido.
Quase todos sonham alto, mas nem todos encontram força de subir pisando por cima de outras vidas. Pearl é sobre isso, é mais que um filme de terror, porque sua premissa não é assustar. Ou talvez ele possa ser considerado um tipo diferente de terror, aquele que nos deixa com o incômodo na boca do estômago porque é aterrorizante se ver nos atos de um monstro. Todo mundo quer ser herói, até mesmo Pearl queria. O difícil é sentar com os corpos que escondemos no porão, abraçar o que existe de podre e sorrir no fim, nem que seja de desespero.
Onde assistir ao filme Pearl (2022)?
A saber, Pearl estreia nesta quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023, exclusivamente no cinema.
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Por fim, não deixe de acompanhar o UltraCast, o podcast do Ultraverso:
Trailer de cinema do filme Pearl (2022)
Pearl (2022): elenco do filme
Mia Goth
David Corenswet
Tandi Wright
Matthew Sunderland
Ficha Técnica do filme Pearl (2022)
Título original do filme: Pearl
Direção: Ti West
Roteiro: Ti West, Mia Goth
Duração: 103 minutos
País: Estados Unidos, Canadá, Nova Zelândia
Gênero: terror
Ano: 2022
Classificação: 18 anos