Documentário ‘Pelé’ (Netflix) e as diferenças entre homem e personagem
Wilson Spiler
O personagem em questão do documentário Pelé, produzido pela Netflix, dispensa apresentações. Afinal, o “atleta do século 20” é um dos rostos mais conhecidos de todos os tempos do esporte mais praticado do mundo. Um verdadeiro sinônimo de Brasil no exterior. No entanto, quando nos referimos ao homem Pelé, ou melhor, a Edson Arantes do Nascimento (como é seu nome de batismo), toda a idolatria muda de figura.
Isso porque o ex-jogador nunca foi brilhante com as palavras, algo já evidenciado pelo ex-atacante e atual senador Romário. Embora Pelé nunca tenha sido um boçal ou algo do tipo, uma das maiores críticas ao antigo atleta é que ele jamais se posicionou em questões importantes, como racismo e ditadura. E é partindo desse princípio que o documentário Pelé, da Netflix, dá o seu pontapé inicial.
Ditadura em foco
Diferentemente de Pelé Eterno (2004), que apenas reverenciava o personagem, aqui, o filme tem um viés mais político. Afinal, já abre com imagens da ditadura e da Copa de 70, período conhecido pela música “Pra Frente Brasil”. A saber, Miguel Gustavo e Raul de Souza compuseram a canção, recentemente lembrada de maneira infame pela (ex) atriz Regina Duarte. O objetivo era incentivar a seleção brasileira na disputa do Mundial, mas foi ferrenhamente usada como peça de propaganda da ditadura militar.
De fato, Pelé teve seu auge na Copa de 1970. Afinal, obteve sua terceira conquista mundial, quando foi definitivamente coroado como rei do futebol. Ou seja, a seleção canarinho foi a verdadeira imagem de um Brasil vencedor. Exatamente o que os militares queriam. E é aí que entra nosso personagem e a sua isenção quanto a debates importantes para a sociedade.
Assim, após uma breve passagem por esse período, o longa-metragem retorna ao passado, ao início da transformação de Edson em Pelé, quando o menino ainda era engraxate e chegou ao Santos com 15 anos para testes. Precocemente – e acertadamente – o jogador foi convocado com apenas 17 anos para a Copa do Mundo de 1958 na Suécia, de onde sairia como um dos protagonistas do primeiro dos cinco títulos brasileiros em mundiais.
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Isenção em lutas importantes
Em certo momento do documentário da Netflix, Pelé afirmou que “as crianças passavam a mão em mim, como se pensassem que saía tinta. Elas nunca tinham visto uma pessoa negra”, quase que reconhecendo o racismo (ainda que sob a inocência de pequenos), do qual nunca foi atingido, graças ao seu sucesso dentro dos campos.
Embora Pelé achasse certo se manter isento – e tem total direito a isso -, outro ídolo mundialmente conhecido agiu diferente: Muhammad Ali. O boxeador discursava frequentemente contra a Guerra do Vietnã e o racismo, como vimos recentemente no ótimo Uma Noite em Miami.
Contudo, o filme não falta apenas de política. Então, para quem é amante do futebol, o documentário da Netflix também é uma delícia, já que narra a trajetória de Pelé nas copas de 58, 62 e 70. Inclusive da de 66, quando saiu derrotado. Todas com muitas cenas e ângulos inéditos.
Mas é quando a produção toca em assuntos mais delicados como racismo e ditadura que ela se torna realmente relevante e diferente. Como destacou o jornalista Paulo Cesar Vasconcellos, “o regime militar tratou Pelé bem porque sabia o quão importante era ter essa relação”. Afinal, quem iria querer mexer com o maior ídolo do país à época?
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A política e Pelé
No entanto, ao ser questionado se a ditadura havia mudado algo para ele, Pelé respondeu que “não, o futebol continuou igual. Pra mim, não teve diferença nenhuma”. O ex-atleta revelou ainda que foi convidado pelos militares para para ações de propaganda ou participar de alguma forma do regime. Felizmente, ele negou o convite dizendo que não tinha intenção de participar de grupo de política, até porque não entendia do assunto. Mesmo assim, vale destacar que, anos mais tarde, em 1995, Pelé foi Ministro do Esporte do governo Fernando Henrique Cardoso.
“Se eu disse que não sabia, estaria mentindo. Muitas coisas eu ficava sabendo. Agora, tinha muitas coisas que a gente não sabia se era verdade ou mentira. Aqui no Brasil, a gente era orientado a não sair do hotel. Me sentia preocupado. (…) Eu sempre tive as portas abertas e sempre me procuraram para ver se apoiava um lado ou outro. Eu tenho absoluta certeza que eu ajudei muito mais o Brasil com meu futebol do que muitos políticos que ganham para fazer isso”, afirmou Pelé em determinado momento do documentário da Netflix.
Alívio
Juca Kfouri lembrou que ganhar a Copa de 1970 virou uma missão de governo. Afinal, a comissão técnica da seleção era “quase toda composta por militares”, destacou. “Foram criados slogans fascistoides: ‘Brasil, ame ou deixe-o’, ‘Ninguém segura este país’… viveu-se uma euforia nacionalista, no pior sentido do termo, insuflado pela ditadura”, finalizou o comentarista.
A Copa de 1970 serviu tanto de propaganda para a ditadura que o próprio Pelé admitiu que não queria jogá-la, mas que era frequentemente procurado pelos militares. “Se disser que voltei a jogar pela seleção por causa do povo brasileiro, estaria mentindo. Era um desafio meu nessa Copa do Mundo”, afirmou. “Acho que foi mais alívio (vencer o campeonato). (…) O fato de o Brasil ser campeão, o país todo deu uma respirada. Eu acho que o Mundial de 70 foi mais para o país do que para o futebol”, completou Pelé.
Homem x personagem
Assim, através de depoimentos de figurinhas conhecidas do futebol, como Jairzinho, Brito, Paulo Cézar Caju, Rivellino e Zagallo; nomes da mídia esportiva como Juca Kfouri, José Trajano, Paulo César Vasconcellos; a até gente completamente de fora do meio, como Gilberto Gil, Benedita da Silva, Delfim Netto e FHC; percebemos o quão grande era o personagem Pelé. Muito maior que o homem. Um verdadeiro deus das quatro linhas.
Talvez o momento do documentário da Netflix que mais resuma essa entidade Pelé seja o depoimento de Rivellino. O ex-companheiro de seleção relembra que, após ter vencido a Copa do Mundo de 70, o maior atleta de todos os tempos teria entrado nos vestiário do estádio berrando: “Eu não morri não, eu não morri não, eu não morri não”. Riva ainda sintetizou bem o que todo mundo que viu Pelé jogar diz: “me arrepio até hoje”.
Por fim, vale destacar que Pelé não teve culpa da ditadura. Absolutamente. O “rei” serviu apenas como massa de manobra de um regime inescrupuloso. No entanto, mesmo tendo sido importante para o Brasil, o homem Edson poderia ser uma lenda ainda maior. Enfim, foram escolhas, das quais cada um faz as suas. Pena que, nesse caso, a vida não imitou a arte.
TRAILER
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FICHA TÉCNICA DE ‘PELÉ’ (NETFLIX)
Título original do filme: Pelé
Direção: Ben Nicholas, David Tryhorn
Onde assistir ao documentário ‘Pelé’: Netflix
Data de estreia: ter, 23/02/21
País: Brasil
Gênero: documentário
Ano de produção: 2021
Duração: 108 minutos
Classificação: livre