RESENHA | AKIRA, de Katsuhiro Otomo, ou “O pós-apocalipse nuclear japonês reinventado sobre duas rodas”
Reinaldo Almeida JR
Criado por Katsuhiro Otomo, Akira é um dos marcos da ficção científica oriental e também uma enorme referência na cultura pop mundial. Obteve destaque no mercado ocidental, sendo publicado na Europa e depois nos EUA pelo selo Epic Marvel, da Marvel Comics em 1988. Mas para que isso ocorresse, grandes mudanças foram feitas a partir do modelo japonês publicado pela Kodansha. No caso norte americano, o próprio Otomo recomendou o famoso colorista Steve Oliff, pioneiro em colorização digital que usou como base para as edições americanas a aquarela das primeiras páginas do mangá original. Ainda mais impactante que as cores, a inversão no modo de leitura, do oriental direita-para-esquerda para o ocidental esquerda-para-direita, também inverteu as páginas e as adaptações ficaram a cargo de Otomo e sua equipe. Tudo para facilitar a aceitação junto ao público leitor de quadrinhos norte americano, afinal os tempos eram outros e o mangá não tinha o peso e a popularidade que tem hoje mundialmente. Essa adaptação aos moldes americanos, que não era exclusiva daquela época, ainda é feita constantemente, principalmente no cinema e seriados de TV. Em dezembro de 1990, a editora Globo lançou o primeiro número de Akira no Brasil utilizando como base a edição da Marvel, em 68 páginas, formato americano, papel couchê e arte de capa própria, tendo sua conclusão em março de 1998 no número 38.
Capa da edição número 1 da Epic Marvel… |
Sou muito mais a capa brazuca da primeira edição da Globo! |
Comparativo entre as versões + uma das muitas cenas fodas de ação em alta velocidade |
As onomatopéias também não ficaram de fora do cuidadoso processo de adaptação pro ocidente |
Nascido em 1954 na província de Miyagi, Otomo cresceu em um período conturbado no Japão e essa vivência teve bastante influência em sua maior obra. A ocupação americana pós segunda guerra durou sete anos (1945-1952) e empreendeu diversas reformas políticas e sociais, incluindo uma nova constituição. Após esse período, veio a retomada da economia japonesa e das relações exteriores recuperando parte de sua soberania como nação, pois ainda sofria o veto de manutenção de forças militares, além de ter que pagar indenizações para os países vizinhos agredidos durante a guerra. Com o desenrolar da Guerra Fria, os EUA posicionam mais tropas no Japão e estimulam a perseguição aos comunistas e a criação de forças para autodefesa. Essas idéias foram bem-vindas pelos conservadores, mas causaram protestos e insatisfação das classes trabalhadoras, estudantis, comunistas e socialistas. Otomo cresceu nesses anos de revoltas e insatisfações contra o governo, em que um período de efervescência da Guerra Fria gerava o medo de um holocausto nuclear mundial, revivendo o recente trauma dos bombardeios a Hiroshima e Nagasaki na sociedade japonesa.
Depois de ser admitido na ONU, renovar tratados com os EUA e pagar as indenizações aos países vizinhos, em 1964 as Olimpíadas de Tóquio representaram uma nova esperança para o povo japonês, com homenagens as vitimas do holocausto e manifestações de apelo a paz mundial. Esse marcante evento influenciou Otomo em Akira, onde as Olimpíadas também são um símbolo de retomada da esperança para o povo de Neo-Tokyo após a detonação da bomba e da Terceira Guerra Mundial.
A subcultura Bosozoku, centrada na pilotagem e personalização de motocicletas, onde seus integrantes eram em geral jovens com menos de vinte anos de idade (idade da maioridade legal no Japão) que pilotavam motocicletas personalizadas, muitas vezes sem capacete e se envolvendo em pilotagens arriscadas, fazendo barulho e atravessando sinais vermelhos, serviram como inspiração para Shotaro Kaneda e as demais gangues em Akira. Posteriormente, a estética de filmes americanos como Blade Runner, Videodrome, Laranja Mecânica e 2001: Uma Odisséia no Espaço também o inspiraram para compor a futurista Neo-Tokyo.
Membros de gangues Bosozoku foram retratados em vários mangás/animes além de Akira |
Brigas generalizadas entre gangues rivais eram comuns e portar bastões de beisebol, bandeiras ou espadas de madeira era necessário quando a porrada estancava . |
Born to be Wild made in Japan |
KANEEEDDAAAA!!??!!? |
Trailer de Burst City (1982), do diretor Sogo Ishii
Crazy Thunder Road (1980), também de Sogo Ishii
No ano de 2019, 38 anos após o fim da terceira guerra mundial, a reconstruída Neo-Tokyo é o cenário onde a trama ocorre. Uma cidade caótica, violenta, dominada por megacorporações, militarizada, com um sistema educacional ineficiente que não se conecta com toda uma geração pós-guerra de jovens órfãos, que sem rumo e perspectivas decai para marginalidade formando gangues que dividem a cidade em territórios e tem na violência e nas corridas em alta velocidade as válvulas de escape para descontar suas frustrações e tédio cotidianos. Os personagens centrais, Shotaro Kaneda e Tetsuo Shima, amigos desde a infância, fazem parte da mesma gangue e estudam na mesma escola técnica. Em uma noite se envolvem em acidente ao avistarem uma criança de estranha aparência na estrada. Logo, o exército aparece e Tetsuo é levado em uma ambulância para local desconhecido. A estranha criança desaparece. Kaneda e seus amigos começam a investigar o que pode ter ocorrido depois que Tetsuo desaparece, reencontram a criança e se envolvem em um conflito entre membros de um grupo da resistência e o exército pela posse de Takashi, ou número 26, a estranha criança, que começa a exibir poderes psíquicos.
Ao cruzar com Kei e Ryu, da resistência, Kaneda começa a entender o que esta acontecendo, sobre quem é o Coronel e o projeto militar que utiliza crianças em experimentos para criação de super humanos do qual Tetsuo agora faz parte, colocando os amigos em rota de colisão.
Elemento sempre presente na trama, as cápsulas são tanto o símbolo da gangue de Kaneda e Tetsuo, que utilizam cápsulas do que parece ser anfetamina pra terem onda e alto desempenho, tanto como inibidores que de certa forma controlam a alta atividade cerebral e diminuem as fortes dores de cabeça que as crianças especiais apresentam, além de gerar o interesse dos dois grupos em Kaneda, depois que ele toma posse de uma dessas. Uma provável alusão à popularização e glamorização do consumo desenfreado de cocaína e esteróides nos anos 70 e 80, visando desenvolvimento de desempenhos além do limite humano.
Hora da balinha! |
“God for health, Bad for education” (Reprodução: pinterest.com) |
Superdosagem? Que se foda! |
Dia difícil? Seus problemas acabaram! (Publicidade dos anos 70) |
Antes mesmo da conclusão do mangá, em 1988 foi lançado o longa metragem com orçamento milionário e participação direta de Otomo nos roteiros e produção, sendo escrito um final diferente para o mangá anos depois. O filme revolucionou em termos de qualidade da animação, fazendo uso de 120 frames por segundo, gerando um hiper detalhismo inédito pra época, além de uma trilha sonora marcante. O filme foi exibido nos cinemas do Brasil e posteriormente sucesso nas videolocadoras (lembram delas?), e foi o primeiro contato de muita gente com a obra e animes em geral.
Um dos pôsteres do filme e o jovem Otomo na época do lançamento |
VHS lançado no Brasil pela Europa Home Video (Reprodução: mercadolivre.com) |
A volta do mangá para o Brasil pela JBC, sendo publicado no inédito formato original, deixou os fãs extasiados. A periodicidade foi comprometida devido a remasterização do material e longos processos de aprovação da edição nacional por parte da equipe de Otomo no Japão. Anunciado em 2015, o primeiro volume saiu em junho de 2017, enquanto o segundo já se encontra entre nós cerca de pouco mais de um ano depois. A coleção, que tem tratamento de luxo que o título merece, contará com 6 volumes, e todos estamos ansiosos pra ter isso completo por aqui. Se continuar nesse ritmo ainda vai demorar um tempãopouco, mas a espera certamente vai valer a pena.
Que lindeza!! <3 |
Otomo e a edição japonesa que é o padrão a ser seguido estritamente pelos licenciadores |
Comemorando 30 anos do lançamento do filme agora em 2018, Akira é uma das obras mais influentes da ficção científica no multimídia, além de um dos principais expoentes do que viria a se tornar o subgênerocyberpunk. Inspirou grande parte dos mangás e animes produzidos nos anos 90 como Neon Genesis Evangelion, Ghost in the Shell, Bubblegum Crisis, Battle Angel Alita, Cowboy Bebop e pós anos 2000 comoBlame e Psycho Pass. No cinema do ocidente, filmes como Matrix e a animação Animatrix, O Vingador do Futuro, Screamers, Poder Sem Limites, Destino Especial e séries como Stranger Things e Altered Carbon.
Notícias sobre a adaptação de um live action de Akira para as telonas são comuns desde meados dos anos 2000 quando a Warner adquiriu os direitos, mas como nunca chegou a ir pra frente, o filme virou uma espécie de lenda urbana. Inúmeros diretores, roteiristas e produtores manifestaram interesse em adaptar a obra, mais recentemente o diretor Taika Watiti, declarando publicamente que faria uma adaptação direta dos mangás, mas ainda não se sabe ao certo se um projeto está realmente em andamento.
Taika Watiti, o nome da vez?? ( Reprodução: ovicio.com.br ) |
Sendo uma atração a parte, a memorável trilha sonora de Akira, feita por Geinoh Yamashirogumi serviu como base para o artista Bwana lançar um album chamado “Capsule’s Pride” lançado em 2016. Partes da trilha, diálogos, ruídos e efeitos foram extraídos e reciclados de forma bem inteligente, recontando de forma linear os eventos passados na animação. Vale conferir, o resultado ficou excelente!
Uma coisa é certa, tanto o anime quanto o mangá são uma incrível experiência estética aliada a uma narrativa que é diferente em cada mídia e mesmo assim obtém bons resultados, cada um funcionando, e muito bem, à sua maneira. Algo que pouco se vê nos dias de hoje, com adaptações cada vez mais problemáticas, mesmo quando os próprios criadores da obra original estão envolvidos. Além de manter-se como uma história de vanguarda, a obra prima de Otomo ainda previu as Olimpíadas de Tóquio de 2020 trinta anos antes! Só espero que as previsões parem por aí, porque as coisas podem não acabar muito bem se tudo se realizar ao pé da letra…
Reinaldo Almeida JR
Reinaldo Almeida, também conhecido como Ray Junior, é jogador e mestre de RPG, leitor inveterado apaixonado por quadrinhos, que anseia fundar seu próprio clube da luta de cultistas a deuses lovecraftianos, viajar pelo multiverso em busca de suas outras versões de terras paralelas para lhes contar que nada é verdadeiro e tudo é permitido, dando início assim a revolução invisível que nos elevará a quarta dimensão.NAN