RESENHA | MONSTRESS – DESPERTAR, de Marjorie Liu e Sana Takeda, ou “O novo candidato a ser o próximo Saga”
Reinaldo Almeida JR
“Uma vez, quando éramos escravos e estávamos famintos, comemos o conteúdo do estômago de um menino morto. Dissemos que era diferente de comer o menino. Mas agora eu sei a verdade. Era a mesma coisa.”
Vencedora do prêmios Hugo Awards e British Fantasy Awards de melhor história em quadrinhos de 2017, a série da Image Comics criada pela roteirista Marjorie Liu (NYX, X-23) e a desenhista Sana Takeda (X-Men, Ms. Marvel, X-23) é uma das gratas surpresas publicadas no Brasil em 2018. Em um mundo alternativo que mistura elementos de fantasia épica e steampunk, a Federação Humana e os Reinos Arcânicos entraram em guerra após anos de coexistência amistosa. Uma frágil trégua é estabelecida após a Batalha de Constantine, que ceifou inúmeras vidas de ambos os lados. Acompanhamos o início da jornada da protagonista, Maika Halfwolf, passados cinco anos desde o início do período de trégua.
O esquecimento é amigo da barbárie. |
Maika Halfwolf é uma ‘arcânica’ de aparência bem similar a humana, que após sobreviver a guerra, decidiu ir atrás de respostas sobre seu passado. Boa parte da memória de sua infância foi perdida, depois de uma expedição com sua mãe e alguns outros estudiosos ao deserto a procura de um antigo artefato. Algo deu tremendamente errado por lá ao fazerem experimentos com o artefato, o que vitimou a mãe de Maika e marcou a própria de forma permanente. Encontrada por saqueadores no deserto, foi vendida como escrava e mantida em um campo de concentração por uma senhora de escravos que leiloava crianças arcânicas para a alta sociedade humana. Durante o violento período de guerra, foi libertada mas a inquietante vontade de descobrir sobre si mesma e as incomuns habilidades que adquiriu após o evento no deserto a faz partir em uma jornada extremamente arriscada.
A fome que anseia por alimento é a mesma que impulsiona a busca por algo que nos complete como indivíduo. |
A primeira edição desse volume, que tem um número maior de páginas, já captura o leitor mostrando a grande habilidade narrativa da dupla para desenvolvimento de cenário e personagens, criando um mundo onde o leitor não demora a emergir, e abordando temas como preconceito racial, escravidão, estado teocrático opressor, enfrentamento de monstros internos e os problemas de uma geração pós-guerra alimentada pelo ódio e preconceito em um mundo onde muros dividem territórios Humanos e Arcânicos. Enquanto Maika tenta entender e controlar a criatura obscura que vive em seu interior e se manifesta através do seu antebraço amputado, ela coloca seu arriscado plano inicial em prática e as consequências poderão desencadear o reinício da guerra. Ambos os lados buscam conhecimento e acesso a poderes de deuses antigos adormecidos (Alô, Lovecraft!), e a linhagem da jovem pode ser a chave para o controle desses poderes.
As parceiras no crime, Sana Takeda e Marjorie Liu respectivamente, afiadíssimas na execução dessa bela obra. |
Ph’nglui mglw’nafh Cthulhu R’lyeh wgah’nagl fhtagn. |
Praticamente todas as personagens de destaque e coadjuvantes são femininas, mulheres de personalidades marcantes, física e mentalmente diferentes, algumas ocupando cargos de poder, sendo elas militares de variadas patentes, líderes religiosas, um esquadrão de inquisidoras, uma primeira-ministro, chefes-guerreiras, rainhas e conselheiras, o que denota neste mundo uma forte característica de sociedade matriarcal, tanto do lado humano quanto do Arcânico. Além disso, apêndices ao fim de cada edição trazem trechos de palestras do Professor Tam Tam, um gato falante erudito contemporâneo, que elucidam questões históricas e conectam ainda mais o leitor ao mundo conhecido. E há de se concordar com Neil Gaiman, que diz que Monstress traz alguns dos melhores gatos dos quadrinhos, como o Mestre Ren.
O audaz Mestre Ren ,com seu par de caudas, nunca perde uma oportunidade de citar os poetas. |
Monstress é uma bela mistura dos estilos e tradição dos quadrinhos ocidentais e orientais com uma sinergia vibrante entre roteiro e arte. A edição da Pixel tem um belo acabamento gráfico que já impressiona na capa dura texturizada em verniz. A série está em seu terceiro volume nos EUA e ficamos na torcida para que o ótimo tratamento dado a esse título promissor continue por aqui.
Uma das estupendas capas de Sana Takeda |