
RESENHA | PIQUENIQUE NA ESTRADA, de Arkádi Strugátski + Boris Strugátski
Eduardo Cruz
“Um piquenique. Imagine uma estrada no interior, uma clareira na mata, perto da estrada. Abrem-se as portas, e sai uma turma de jovens. Começam a tirar do porta-malas cestas com mantimentos, armam as tendas, acendem a fogueira. Churrasco, música, fotos… De manhã eles vão embora. Animais, pássaros e insetos da floresta, que assistiram horrorizados àquele evento noturno, saem de seus esconderijos. E o que eles encontram? Manchas do óleo que pingou do radiador, uma lata com um pouco de gasolina, velas e filtros usados. Do lado, estão jogados os panos sujos de óleo, as lâmpadas queimadas, uma chave de fenda que alguém esqueceu na grama. Nos rastros deixados pelo carro sobrou um pouco de lama que veio grudada de algum brejo no caminho… E, claro, há cinzas de fogueira, restos de comida, embalagens de chocolate, latas e garrafas de bebida, guardanapos amassados, bitucas, um lenço perdido, um velho jornal rasgado, um canivete de bolso derrubado por alguém, moedas, flores murchas do campo vizinho…”
Enfim, dados os problemas inerentes da natureza humana, não seria de se surpreender que ninguém lá fora faça contato com a gente. Do ponto de vista cósmico, devemos ser uma piada. Ou no mínimo irrelevantes.
A literatura de ficção científica tentou por décadas responder – por meio de muita especulação – a esta pergunta, e são muitíssimas as concepções de contatos com outras civilizações alienígenas, que vão dos belicosos marcianos de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos aos benevolentes seres de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Arthur C. Clarke. Maniqueísmos à parte, a maioria do que foi pensado neste sentido tem como fundamento uma certa motivação relacionável com a psicologia humana, seja para o bem ou para o mal. Mas e se nossos irmãozinhos do espaço fossem absolutamente insondáveis para nossa forma de pensar?
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Os irmãos Strugatski, o tesouro do Sci Fi russo! |
Piquenique na Estrada aborda o tema das visitações alienígenas de uma forma única e primorosa. Existem certos locais no planeta que foram visitados por alienígenas. Ninguém os viu, ninguém chegou a saber o que eles queriam, se vão voltar… Mas depois da Visitação, como ficou conhecido o fenômeno, os locais onde ocorreram estes contatos ficaram… estranhos. Dentro de uma área delimitada, existem anomalias físicas bastante peculiares, algumas inofensivas, outras bastante perigosas: Nestas áreas afetadas pela Visitação, ocorrem fenômenos bizarros, como a refração da luz e a projeção de sombras não obedecerem às leis da física, pequenos pontos com gravidade tão intensa que podem esmagar qualquer coisa que entre no perímetro onde a anomalia ocorre, bem como áreas onde a temperatura é tão alta que pode carbonizar quem tenha o azar de entrar na área em questão, entre muitos outros perigos bizarros inexplicáveis.
Com a Zona é assim: voltou com mercadoria, milagre; voltou vivo, sorte; foi ferido à bala pela patrulha, que bênção; e o resto é destino…
Logo, circular dentro da Zona é morte quase certa a cada passo dado. E quem iria querer se aventurar em um lugar assim? Isolem e evacuem a área e vida que segue, certo?
Errado!
Além das anomalias físicas os estranhos visitantes deixaram para trás estranhos objetos, e alguns deles a humanidade não consegue nem começar a compreender para que servem ou como funcionam. Outros, mesmo sem se ter certeza de sua função original, propiciaram pequenos saltos tecnológicos à humanidade. Os governos dos países onde ocorreram as Visitações criaram institutos com o objetivo de estudar tais artefatos, mas como é da natureza humana, sempre tem alguém passando algo por debaixo dos panos. Por isso existem os Stalkers, indivíduos que arriscam a vida (e a própria capacidade de gerar descendentes saudáveis em alguns casos!) entrando ilegalmente dentro das Zonas para subtrair alguns desses objetos e vendê-los a quem pagar mais.
E, de repente, do nada, uma sensação de desespero tomou conta de seu interior. Nada adiantava. Tudo era em vão. Meu Deus, pensou ele. Nós não vamos conseguir nada! Não vamos conseguir segurar, nem sequer parar essa onda! Não há força capaz de conter uma inundação, compreendeu, apavorado. E não porque trabalhamos mal ou porque o inimigo seja mais hábil ou mais esperto. Não. É porque o mundo é assim. O ser humano é assim! É da natureza humana. Se não fosse a Visitação, seria outra coisa qualquer. O porco sempre achará lama para chafurdar…
Apesar de isso ter ocorrido uma meia dúzia de vezes ao redor do planeta, o livro foca a Zona na cidade de Harmont, no Canadá, e em Redrick Schuhart, um desses Stalkers. Existem breves relatos de outras Zonas no livro, mas bem vagos, apenas o suficiente para saber que o clima de medo e incerteza é o mesmo, não importa onde seja a Zona. Os riscos também são os mesmos. E os Stalkers sempre tentam a sorte em troca de $$$. Falando em vago, os Strugátski cultivam uma prosa com o pé justamente nesta condição, o que deixa muitas perguntas a serem respondidas pelo próprio leitor, como o porquê das Visitações; os objetos foram abandonados ou deixados de propósito, como se estivéssemos sendo estudados? será o início de uma invasão? ou sequer fomos notados como “fauna local” nessa breve visita de habitantes de mundos distantes? Aliás, essa última pergunta faz até uma breve ponte com o Cosmicismo de H. P. Lovecraft, uma vez que o desprezo e irrelevância da humanidade neste universo de Piquenique na Estrada são bem semelhantes à humanidade retratada por Lovecraft…
E sobre o “Inteligente” entre aspas lá em cima, no começo do texto? o livro tem uma passagem bastante interessante onde dois personagens tentam definir o que é Inteligência, sem sucesso. Deve ser porque são humanos, e humanos não têm lá muita intimidade com esse conceito rs.
(…) E quanto à idéia de que o ser humano, diferentemente de outros animais, sente uma incontrolável necessidade de adquirir novos conhecimentos? Li sobre isso em algum lugar.
– Eu também. O problema é que o ser humano, pelo menos um ser humano comum, facilmente supera essa sua necessidade de adquirir conhecimentos. A meu ver, essa necessidade nem mesmo existe. Há uma necessidade de entender, mas para isso são necessários conhecimentos. A hipótese da existência de Deus, por exemplo, é uma excelente oportunidade de entender absolutamente tudo sem adquirir qualquer conhecimento. Oferece para o ser humano um sistema simplificado de mundo e explica tudo com base nesse modelo simplificado. e há certas fórmulas decoradas junto com a assim chamada intuição, a boa e velha esperteza cotidiana e um pouco de bom senso…
A FC se presta facilmente à subversão imaginativa de qualquer status quo. Burocratas e políticos, que não podem se dar ao luxo de cultivar a imaginação, tendem a presumir que são só bobagens e armas de raios, coisas de criança. Para atrair a fúria do censor, talvez um escritor precise ser tão obviamente crítico da utopia quanto Zamiátin em Nós. Os irmãos Strugátski não eram óbvios, e nunca (até onde vai meu conhecimento limitado) diretamente críticos das políticas do seu governo. O que eles fizeram, que na época achei tão admirável e ainda acho, foi escrever como se fossem indiferentes à ideologia – algo que muitos de nós, escritores nas democracias ocidentais, tínhamos dificuldade de fazer. Eles escreviam como homens livres escrevem.
“Um piquenique. Imagine uma estrada no interior, uma clareira na mata, perto da estrada. Abrem-se as portas, e sai uma turma de jovens. Começam a tirar do porta-malas cestas com mantimentos, armam as tendas, acendem a fogueira. Churrasco, música, fotos… De manhã eles vão embora. Animais, pássaros e insetos da floresta, que assistiram horrorizados àquele evento noturno, saem de seus esconderijos. E o que eles encontram? Manchas do óleo que pingou do radiador, uma lata com um pouco de gasolina, velas e filtros usados. Do lado, estão jogados os panos sujos de óleo, as lâmpadas queimadas, uma chave de fenda que alguém esqueceu na grama. Nos rastros deixados pelo carro sobrou um pouco de lama que veio grudada de algum brejo no caminho… E, claro, há cinzas de fogueira, restos de comida, embalagens de chocolate, latas e garrafas de bebida, guardanapos amassados, bitucas, um lenço perdido, um velho jornal rasgado, um canivete de bolso derrubado por alguém, moedas, flores murchas do campo vizinho…”
Enfim, dados os problemas inerentes da natureza humana, não seria de se surpreender que ninguém lá fora faça contato com a gente. Do ponto de vista cósmico, devemos ser uma piada. Ou no mínimo irrelevantes.
A literatura de ficção científica tentou por décadas responder – por meio de muita especulação – a esta pergunta, e são muitíssimas as concepções de contatos com outras civilizações alienígenas, que vão dos belicosos marcianos de H. G. Wells em A Guerra dos Mundos aos benevolentes seres de 2001 – Uma Odisséia no Espaço, de Arthur C. Clarke. Maniqueísmos à parte, a maioria do que foi pensado neste sentido tem como fundamento uma certa motivação relacionável com a psicologia humana, seja para o bem ou para o mal. Mas e se nossos irmãozinhos do espaço fossem absolutamente insondáveis para nossa forma de pensar?
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Os irmãos Strugatski, o tesouro do Sci Fi russo! |
Piquenique na Estrada aborda o tema das visitações alienígenas de uma forma única e primorosa. Existem certos locais no planeta que foram visitados por alienígenas. Ninguém os viu, ninguém chegou a saber o que eles queriam, se vão voltar… Mas depois da Visitação, como ficou conhecido o fenômeno, os locais onde ocorreram estes contatos ficaram… estranhos. Dentro de uma área delimitada, existem anomalias físicas bastante peculiares, algumas inofensivas, outras bastante perigosas: Nestas áreas afetadas pela Visitação, ocorrem fenômenos bizarros, como a refração da luz e a projeção de sombras não obedecerem às leis da física, pequenos pontos com gravidade tão intensa que podem esmagar qualquer coisa que entre no perímetro onde a anomalia ocorre, bem como áreas onde a temperatura é tão alta que pode carbonizar quem tenha o azar de entrar na área em questão, entre muitos outros perigos bizarros inexplicáveis.
Com a Zona é assim: voltou com mercadoria, milagre; voltou vivo, sorte; foi ferido à bala pela patrulha, que bênção; e o resto é destino…
Logo, circular dentro da Zona é morte quase certa a cada passo dado. E quem iria querer se aventurar em um lugar assim? Isolem e evacuem a área e vida que segue, certo?
Errado!
Além das anomalias físicas os estranhos visitantes deixaram para trás estranhos objetos, e alguns deles a humanidade não consegue nem começar a compreender para que servem ou como funcionam. Outros, mesmo sem se ter certeza de sua função original, propiciaram pequenos saltos tecnológicos à humanidade. Os governos dos países onde ocorreram as Visitações criaram institutos com o objetivo de estudar tais artefatos, mas como é da natureza humana, sempre tem alguém passando algo por debaixo dos panos. Por isso existem os Stalkers, indivíduos que arriscam a vida (e a própria capacidade de gerar descendentes saudáveis em alguns casos!) entrando ilegalmente dentro das Zonas para subtrair alguns desses objetos e vendê-los a quem pagar mais.
E, de repente, do nada, uma sensação de desespero tomou conta de seu interior. Nada adiantava. Tudo era em vão. Meu Deus, pensou ele. Nós não vamos conseguir nada! Não vamos conseguir segurar, nem sequer parar essa onda! Não há força capaz de conter uma inundação, compreendeu, apavorado. E não porque trabalhamos mal ou porque o inimigo seja mais hábil ou mais esperto. Não. É porque o mundo é assim. O ser humano é assim! É da natureza humana. Se não fosse a Visitação, seria outra coisa qualquer. O porco sempre achará lama para chafurdar…
Apesar de isso ter ocorrido uma meia dúzia de vezes ao redor do planeta, o livro foca a Zona na cidade de Harmont, no Canadá, e em Redrick Schuhart, um desses Stalkers. Existem breves relatos de outras Zonas no livro, mas bem vagos, apenas o suficiente para saber que o clima de medo e incerteza é o mesmo, não importa onde seja a Zona. Os riscos também são os mesmos. E os Stalkers sempre tentam a sorte em troca de $$$. Falando em vago, os Strugátski cultivam uma prosa com o pé justamente nesta condição, o que deixa muitas perguntas a serem respondidas pelo próprio leitor, como o porquê das Visitações; os objetos foram abandonados ou deixados de propósito, como se estivéssemos sendo estudados? será o início de uma invasão? ou sequer fomos notados como “fauna local” nessa breve visita de habitantes de mundos distantes? Aliás, essa última pergunta faz até uma breve ponte com o Cosmicismo de H. P. Lovecraft, uma vez que o desprezo e irrelevância da humanidade neste universo de Piquenique na Estrada são bem semelhantes à humanidade retratada por Lovecraft…
E sobre o “Inteligente” entre aspas lá em cima, no começo do texto? o livro tem uma passagem bastante interessante onde dois personagens tentam definir o que é Inteligência, sem sucesso. Deve ser porque são humanos, e humanos não têm lá muita intimidade com esse conceito rs.
(…) E quanto à idéia de que o ser humano, diferentemente de outros animais, sente uma incontrolável necessidade de adquirir novos conhecimentos? Li sobre isso em algum lugar.
– Eu também. O problema é que o ser humano, pelo menos um ser humano comum, facilmente supera essa sua necessidade de adquirir conhecimentos. A meu ver, essa necessidade nem mesmo existe. Há uma necessidade de entender, mas para isso são necessários conhecimentos. A hipótese da existência de Deus, por exemplo, é uma excelente oportunidade de entender absolutamente tudo sem adquirir qualquer conhecimento. Oferece para o ser humano um sistema simplificado de mundo e explica tudo com base nesse modelo simplificado. e há certas fórmulas decoradas junto com a assim chamada intuição, a boa e velha esperteza cotidiana e um pouco de bom senso…
A FC se presta facilmente à subversão imaginativa de qualquer status quo. Burocratas e políticos, que não podem se dar ao luxo de cultivar a imaginação, tendem a presumir que são só bobagens e armas de raios, coisas de criança. Para atrair a fúria do censor, talvez um escritor precise ser tão obviamente crítico da utopia quanto Zamiátin em Nós. Os irmãos Strugátski não eram óbvios, e nunca (até onde vai meu conhecimento limitado) diretamente críticos das políticas do seu governo. O que eles fizeram, que na época achei tão admirável e ainda acho, foi escrever como se fossem indiferentes à ideologia – algo que muitos de nós, escritores nas democracias ocidentais, tínhamos dificuldade de fazer. Eles escreviam como homens livres escrevem.