RESENHA | Zé do Caixão – MALDITO, a biografia, de André Barcinski e Ivan Finotti, ou “Coffin Joe é o meu pastor e horror não me faltará”
Eduardo Cruz
”O que é a vida?
É o princípio da morte.
O que é a morte?
É o fim da vida.”
Se eu tivesse que definir em apenas uma palavra o cidadão José Mojica Marins, bem, eu não conseguiria! Uma palavra só? Nada justo! Melhor seria se me dessem um estoque ilimitado de adjetivos, isso sim faria maior justiça a Mojica: Paixão, resiliência, garra (com trocadilho mesmo!), criatividade, determinação, coragem, astúcia…. só mesmo essa soma de qualidades para explicar a longevidade da carreira de um cineasta em um país que não valoriza a cultura de um modo geral, ainda menos quando falamos em uma arte tão cara quanto o cinema. Mojica tem uma filmografia extensa, e mesmo assim provavelmente poderíamos somar os orçamentos de todos os filmes em que ele produziu, dirigiu, atuou…. ainda assim essa soma não ultrapassaria o orçamento do último filme dos Transformers. Nesse quesito, deveria ser inaugurada uma cadeira em universidades ensinando o método Mojica de realizar longas metragens com valores irrisórios.
O lado humano de Zé do Caixão…. |
Lembro do primeiro contato que eu tive com a persona fictícia de Mojica Marins, um personagem que acabou ficando maior e, de certa forma, mais real que o próprio Mojica: O Zé do Caixão. Eu era garoto, e ele participava de um programa do Gugu ou Silvio Santos, um desses programas de TV de domingo à tarde que exploram de forma sensacionalista seus convidados “exóticos”, na guerra para ganhar alguns pontos de audiência. Eu não fazia idéia de quem era aquele maluco de cartola, bradando pragas sinistras para os telespectadores, usando uma capa de Exu caveira e unhas compridas, que mais lembravam garras, mas os mais velhos lá em casa reconheceram a figura, o tal “Zé do Caixão”. Fiquei intrigado com aquela criatura, nunca tinha visto nada parecido com aquilo em minha curta vida antes. Tentei descobrir o máximo possível daquela figura perguntando aos meus tios e avós, mas basicamente, as pessoas só se lembram do José Mojica Marins enquanto Zé do Caixão, e não de seu trabalho, sua filmografia. Zé do Caixão sempre fascinou adultos e crianças, e embora esse nosso lindo país de memória curta não consiga enxergar com acuidade seu imenso valor e contribuição para a cultura popular nacional, uma coisa é certa: ele soube se fazer enxergar. Ponto.
A Lenda e eu |
Alguns anos depois, ainda na era do VHS (a maioria dos que lêem esse texto não faz idéia do que foi um VHS rs), esbarrei com “O estranho mundo de Zé do Caixão” escondido em uma locadora (a maioria dos que lêem esse texto nem sabe o que é uma locadora rs) e finalmente consegui ter uma fração de idéia do que era o Zé do Caixão. Mas ainda era uma época de internet discada (a maioria que lê isso nem sabe é internet discada rs), e muito pouca informação atravessava o fio telefônico até o meu PC, comparado com a velocidade e abundância de informação de hoje. Avance mais uns 6 anos e, novamente, em outra locadora empoeirada, encontrei a obra máxima de Mojica: “À meia noite levarei sua alma”, ode suprema à iconoclastia e desobediência do indivíduo perante as normas opressivas da sociedade, o filme que te faz compreender porque Mojica é comparado à Luis Buñuel, e que dá orgulho de ter sido produzido no Brasil.
À meia noite levarei sua alma (1963)
O estranho mundo de Zé do Caixão (1968)
Em “À meia noite levarei a sua alma” vemos o surgimento do personagem Zé do Caixão, o indivíduo que não se conforma com o pensamento de rebanho, um monstro tipicamente brasileiro, que se crê superior à massa, numa distorção Nietzschiana do conceito de Übermensch, com um mantra que tenta executar a qualquer preço: A CONTINUIDADE DO SANGUE! Na busca por gerar o sucessor perfeito, Zé do Caixão era o homem tornado monstro por meio das barbáries que perpetrava em nome de seu objetivo supremo.
José Mojica “Zé do Caixão” Marins e Christopher “Drácula Saruman” Lee |
Depois disso, e de alguns anos já usufruindo o reconhecimento no estrangeiro – enquanto aqui a maioria das pessoas ainda o enxergavam apenas como “pitoresco” – foi lançado um Box com 6 filmes altamente relevantes de sua filmografia (como o destruidor “Ritual dos sádicos” ou “Esta noite encarnarei no teu cadáver”, a continuação do “À meia noite…”) e, paralelamente a isso, a internet melhorou o suficiente para possibilitar o download de mais alguns filmes, e os que não achávamos online, encomendávamos de sites de colecionadores, como o falecido site Putrescine, com um acervo que era uma mina de ouro do cinema nacional.
Aí, um dia você acorda, passa tudo isso em retrospecto na memória e PAH! se descobre fã de José Mojica Marins. Um fã? Melhor dizendo, um seguidor ávido, fascinado com a visão desse diretor autodidata, que aprendeu cinema assistindo filmes, de dentro da cabine de projeção do cinema de bairro onde seu pai trabalhava como projecionista no subúrbio de São Paulo.
Seguindo o rastro da obra de Mojica assim tão obsessivamente, era evidente que uma hora eu esbarraria em “Maldito”, a biografia de José Mojica Marins, de André Barcinski e Ivan Finotti, outros dois Mojicólatras aficionados (é preciso um para reconhecer um), e foi exatamente o que aconteceu! Era mais uma excelente aquisição para quem estava “estudando” Zé do Caixãologia há quase uma década sem nem se dar conta disso. Não contente em assistir ao máximo de seus filmes que eu pudesse pôr as mãos, eu queria conhecer os percalços dessa vida, o que motivou essa imaginação sem amarras e, quem sabe, conhecer o segredo de sua persistência na execução de sua obra. Os autores fizeram um trabalho de pesquisa bem abrangente, e é uma das biografias mais completas em que já tive o prazer de pôr as mãos.
Capa da primeira edição de “Maldito” |
Consegui um autógrafo do Mestre, claro… |
Nada contra quem costuma ler biografias de artistas, mas eu sempre preferi apreciar diretamente a arte produzida a ler a respeito dos acontecimentos da vida do artista em questão, com raras exceções, e Mojica é “A” exceção: os esquemas rocambolescos bolados para arrecadar verba para realizar seus filmes, os casos hilários e pitorescos por trás das filmagens, como o roubo das árvores plantadas ao longo do Largo do Arouche, roubadas de madrugada pela equipe de Mojica para compor o cenário da floresta de “À meia noite…”, ou quando Glauber Rocha levanta da cadeira no meio de uma sessão de “À meia noite…” berrando “Putaquipariu, esse cara é um gênio!”, seus rolos com mulheres (Mojica chegou a ter 4 mulheres simultaneamente, uma verdadeira maratona de casa em casa para “bater o ponto”!), o infarto sofrido por conta da dieta em época de filmagens (cachaça, salame e alguns comprimidos para se manter acordado), o tardio e merecido reconhecimento da crítica internacional, os prêmios recebidos no exterior…. tudo estava lá, para quem quisesse conhecer mais a fundo o “Mestre” (como era carinhosamente chamado pelos alunos do curso de artes dramáticas fundado e administrado por ele, uma maneira de sempre ter elenco barato à disposição), além da sua obra cinematográfica, os percalços de uma vida que sempre foi febril no tocante a fazer cinema. O livro cobre desde a chegada de seus pais, imigrantes espanhóis ao Brasil, passando pela infância e adolescência de Mojica, os tempos bons e ruins, as dificuldades financeiras, a fase em que o diretor teve que trabalhar em produções pornográficas da boca do lixo para sobreviver… enfim, muitas histórias dentro de histórias, e tudo verdade, mesmo que algumas sejam absurdas de acreditar! Tudo isso embalado em um texto ágil e envolvente.
Trecho de 24 horas de sexo explícito (1985)
Em 2015, o canal Space produziu uma mini série em seis episódios adaptando alguns dos principais acontecimentos da vida de José Mojica Marins descritos na biografia. A mini série, intitulada simplesmente “Zé do Caixão”, cobre o início das primeiras experimentações com cinema, passando pelos maiores sucessos, o pesadelo que inspirou Mojica a criar Zé do Caixão, a fase de decadência, onde Mojica só dirigiu produções eróticas, entre outros causos da vida do diretor, com Matheus Nachtergaele no papel principal. Semelhança estarrecedora. O próprio Mojica declarou ter ficado impressionado ao entrar no set de filmagens e ver Nachtergaele trajado à caráter, como Zé do Caixão. Aproveitando o espaço, deixo aqui uma entrevista com a lenda conduzida pelo pessoal do Podtrash, um podcast altamente especializado em comentar filmes trash e congêneres. Aposto que para o pessoal do podcast, foi um sonho realizado. Inveja branca de vocês, guys heheheh…..
Caracterização perfeita |
A minissérie Zé do Caixão
Infelizmente para as novas gerações, esse fantástico livro, da Editora 34, publicado originalmente em 1998, já estava esgotado havia alguns anos, até que a Darkside Books entra na jogada e apronta novamente. Sim, a editora da caveira não dormiu no ponto e adquiriu os direitos de publicação da biografia para editar um tijolo fantástico de 666 (!!!) páginas. Zé do Caixão, nosso próprio bicho papão bem brasileiro, estava em casa! A diferença do número de páginas em relação à edição anterior permitiu que o livro fosse ainda mais ricamente ilustrado do que sua versão anterior, com fotos ampliadas e muitas outras fotos inéditas. Na verdade, não somente as fotos, mas toda a parte gráfica do livro é impressionante, com uma capa belíssima, que captura seu olhar por muitos minutos. Um pacote à altura para um livro excelente e um tributo mais que apropriado à vida e obra do Mestre, com todo o conceito visual da edição perfeitamente alinhado com a obra de Mojica, ou seja, é um livro dark, imponente, assustador, de meter medo já na capa, e que lembra um grimório de magia. Além disso, “Maldito, a biografia” possui uma extensa seção, esforço hercúleo dos autores em catalogar TODA A OBRA de mojica: seus filmes, curtas metragens, programas de TV, novelizações, histórias em quadrinhos… Todas as produções com um grau de envolvimento de José Mojica Marins constam lá. Com esse guia em mãos, só posso desejar uma coisa: Bom garimpo!
Fui obrigado a comprar pela segunda vez o mesmo livro rs. Obrigado, Darkside.
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Mais um livraço de respeito da Darkside Books… |
Termino esse texto rogando uma singela praga aos leitores: QUE VOCÊ SEJA ACORRENTADO(A) À UMA CADEIRA DE PREGOS DE FERRO FERVENTE, E UMA TEVÊ REPRISANDO O ESPECIAL DE NATAL DO ROBERTO CARLOS COM PARTICIPAÇÃO ESPECIAL DE SIMONE, CANTANDO “ENTÃO É NATAL” … POR TODA A ETERNIDADE!!!!, caso não corra atrás de seu exemplar de “Maldito – A biografia”…….
Fica aí duvidando de praga do Zé, fica…. |
BRINCADEIRINHA!!! SEM PRAGAS, VAMOS SÓ PULAR NO SALÃO, ATÉ CAIR!!!!!
Texto gentilmente cedido pelo blog Zona Negativa