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Scooby-Doo está completando 21 anos

Vanderlei Tenório

Ao longo da história da animação televisiva norte-americana, poucas franquias alcançaram a longevidade e o número de iterações e desdobramentos que Scooby-Doo conquistou. Criada por Joe Ruby e Ken Spears, com desenhos memoráveis de Iwao Takamoto, essa icónica série da Hanna-Barbera tem sido reinventada desde 1969, ultrapassando em número de reencarnações até mesmo a capacidade de regeneração do Doctor Who.

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A cada geração, uma nova versão de Scooby-Doo se torna popular, o que significa que meu Scooby-Doo é diferente do Scooby-Doo do meu pai, o que é uma feliz coincidência.

Atualmente, a franquia Scooby-Doo possui 14 séries animadas, incluindo a original “Scooby-Doo, Cadê Você?”, “O Pequeno Scooby-Doo”, “O Que Há de Novo, Scooby-Doo?” e a mais recente “Velma”, exibida na HBO Max em 2023.

Em termos de números, Scooby-Doo é o segundo desenho americano com maior número de temporadas de todos os tempos, perdendo apenas para “Os Simpsons”, que possui 33 temporadas, que juntas, somam 728 episódios. No entanto, nem todas as temporadas têm o mesmo número de capítulos. Ainda assim, considerando as novas temporadas encomendadas, Scooby-Doo em breve se tornará o desenho com maior número de temporadas.

Estrutura básica da série

Como destacado no artigo “50 anos atrás, Scooby-Doo era a série de mistério perfeita, estranha e esperançosa de 1969 necessária”, escrito por Olivia Rutigliano em 2019 no site CrimeReads, a fórmula da série é bastante básica e identificável. Scooby-Doo apresenta um grupo improvável de solucionadores de mistérios: a garota bonita e rica, Daphne; o garoto superdotado, Fred; o caricato e drogado Salsicha; e a nerd Velma. Juntos, eles viajam em uma van psicodélica, desafiando um status quo dominado por adultos corruptos e coniventes.

Rutigliano sublinha que, em uma década marcada por mudanças culturais caóticas, tensões crescentes e violência em massa, Scooby-Doo transmitia a mensagem de que sempre há uma solução subjacente que pode ser alcançada por meio de uma investigação tranquila. Apesar de suas diferenças arquetípicas, o grupo se une em busca da sanidade e da normalidade, desmistificando com paciência e pragmatismo as situações extremas que perturbam o cotidiano local. Assim, Scooby-Doo oferecia aos jovens americanos e de outros nacionalidades um caminho alternativo de resistência contra um mundo adulto ganancioso, através da astúcia e da enganação, em vez de combate ou protesto.

Rutigliano destaca que o aspecto mais confiável da série Scooby-Doo é a lição de que há uma explicação razoável para cada ocorrência estranha. Isso funciona em dois sentidos: há uma explicação física e científica para os fenômenos assustadores, assim como uma motivação humana consistente para a elaboração de tramas engenhosas. Os vilões de Scooby-Doo exigem compreensão de física e engenharia para criar suas artimanhas, mas todos eles são motivados por uma única coisa: ganância.

Realismo

O artigo de Rutigliano também ressalta que, ao contrário de muitos desenhos animados, os episódios de Scooby-Doo não terminam com uma mensagem moralista, mas sim com uma nota realista. A série busca ativamente o realismo, mesmo com seus protagonistas sendo quatro adolescentes-detetives e um cachorro antropomórfico.

Essa abordagem realista é cativante, pois desafia as expectativas do público. Scooby-Doo sugere que o mundo é estranho, mas ainda assim existem explicações lógicas para os eventos estranhos. Ao fazer isso, a animação lança uma acusação indireta ao capitalismo do mundo adulto, alinhando-se aos princípios gerais do movimento de contracultura que ocorria nos Estados Unidos durante a mesma época.

Raja Gosnell e James Gunn

A adaptação de Raja Gosnell para o cinema em live-action lançada em 8 de junho de 2002 não apenas manteve a originalidade dos personagens, temas e visões, mas também redefiniu a cultura daquela época e mudou o rumo da franquia.

O filme de Gosnell bem-sucedido em vários aspectos, e um dos acertos notáveis foi a escolha de elenco feita por Mary Vernieu. Freddie Prinze Jr., Sarah Michelle Gellar, Linda Cardellini e Matthew Lillard incorporaram os personagens clássicos de forma tão natural e orgânica que é difícil acreditar que não foram eles os responsáveis por criá-los, ou que não sejam reais de fato. O filme também contou com notáveis coadjuvantes, como Isla Fisher, Miguel A. Núñez Jr. e Rowan Atkinson, que interpretou o enigmático Emile Mondavarious. Ver o britânico atuando de forma mais séria e com falas, diferente de seu personagem icónico Mr. Bean, é uma agradável surpresa.

Uma das principais conquistas do longa da Warner Bros. foi a habilidosa adaptação do enredo realizada por James Gunn. Em vez de simplesmente copiar e reproduzir as histórias já apresentadas em milhares de episódios da adorada série animada escritas por Joe Ruby e Ken Spears, Gunn desconstruiu a fórmula ao mesmo tempo em que permaneceu fiel a ela.

Arquétipos

O enredo enxuto e dinâmico de Gunn explora os arquétipos dos personagens em relação aos mistérios que enfrentam, sejam eles de natureza profissional ou pessoal. Antes de alcançar o sucesso comercial e crítico com filmes como “Guardiões da Galáxia” (2014), “Guardiões da Galáxia Vol. 2″ (2017) e “O Esquadrão Suicida” (2021), bem como sua contribuição na franquia “Vingadores” e sua subsequente promoção ao cargo de co-presidente e co-CEO da DC Studios, essa foi a primeira incursão de Gunn no universo pelo qual ele é mais conhecido atualmente: um conjunto familiar com boa química, mas também com suas tensões internas.

À vista disso, Gunn conseguiu desenvolver camadas para cada personagem, mostrando suas características conflitantes de forma clara. Na trama, fica palpável que Velma é subestimada em seu trabalho, Fred é egocêntrico, Daphne é fútil, e Salsicha é um indivíduo descomprometido, movido pela inércia. Tais características conflitantes são amplamente evidenciadas ao longo 86 minutos.

Relacionamento em crise

Inicialmente, para Gunn era necessário transmitir a sensação de crise no relacionamento, tipo, eles trabalham juntos há muitos anos, tem várias rugas e assuntos mal resolvidos, há uma disfunção interna da Mystery Inc. e isso atinge seu ponto de ruptura. Esse momento é breve, mas carregado de significado.

Nesse contexto, é fascinante observar como uma crise de relacionamento muitas vezes se desenvolve em uma parceria silenciosa, resultado de conflitos latentes negligenciados durante a agitação cotidiana. Gunn destaca que quando alguém se encontra em um relacionamento onde se sente solitário, incompreendido, constantemente irritado com o parceiro e até mesmo considerando o término, esses são sinais claros de uma crise. Inicialmente, essa percepção pode ser chocante e gerar questionamentos sobre por que isso está acontecendo justamente com aquela pessoa.

Além disso, ele ressalta que pode oferecer pouco consolo, mas crises são uma parte integral de qualquer relacionamento e ocorrem em praticamente todas as parcerias, pelo menos uma vez. Mesmo nos grupos de amigos que parecem perfeitos, nem sempre reina a paz, alegria e felicidade. Na verdade, as crises de relacionamento são muito mais comuns do que se imagina e geralmente surgem em estágios mais avançados.

Por conseguinte, dois anos após a separação, quando eles se encontram na Spooky Island para resolver um novo mistério, o filme permite que eles reconstruam lentamente seus relacionamentos e aprendam a ser uma equipe novamente.

Reconstruindo a relação

O argumento de Gunn explorou diferentes caminhos e alterou a dinâmica da equipe de forma funcional. Embora ele não tenha obtido autorização para tornar Velma e Fred totalmente gays como pretendia, conseguiu fortalecer o relacionamento entre eles. Um exemplo notável é quando Velma comenta como Daphne e Fred sempre se separam quando tentam investigar em busca de pistas, deixando Velma sozinha.

Em uma reviravolta surpreendente, Fred permite que Velma o acompanhe e eles trabalham juntos o tempo todo. Essa mudança não é uma tentativa de ser apenas uma inclusão metalinguística, mas sim de melhorar o relacionamento de um grupo que está em crise.

https://www.youtube.com/watch?v=O4miWCuGrdk

Daphne Blake e Norville Rogers

É interessante ver como o filme aborda os personagens de Daphne e Salsicha de uma forma mais profunda, fugindo dos estereótipos pré-concebidos. Ao dar destaque ao arco de Daphne, aqui interpretada por Sarah Michelle Gellar, mostrando-a treinando artes marciais para se defender dos sequestros, o filme lhe dá uma dimensão de força e determinação. Isso mostra que ela não é apenas uma patricinha norte-americana estereotipada, mas sim uma mulher forte e obstinada.

https://www.youtube.com/watch?v=Sp4SFDlEuA0

Da mesma forma, Salsicha vai além do estereótipo do jovem drogado good vibes, revelando-se como um amigo leal e encorajador. Ele é retratado como alguém que enriquece a vida dos outros por meio de suas amizades, desafiando-os a serem melhores e apoiando-os nos momentos difíceis. O desempenho de Matthew Lillard como Salsicha foi tão bem recebido que ele se tornou o ator principal a interpretar o personagem em todas as mídias relacionadas a Scooby-Doo desde então.

Essas abordagens mais complexas dos personagens de Daphne e Salsicha no filme mostram como eles podem ser mais do que meros arquétipos, adicionando camadas de profundidade às suas personalidades e relacionamentos. Isso permite que o público se conecte de forma mais significativa com esses personagens e aprecie as suas jornadas ao longo do filme.

Fred Jones

É fundamental ressaltar que ao longo do filme, o personagem Fred Jones, interpretado por Freddie Prinze Jr., passa por uma transformação gradual, afastando-se da masculinidade tóxica e do narcisismo. De maneira coerente, ele critica os efeitos negativos dessa masculinidade tanto em contextos heteronormativos quanto homonormativos. O Fred de Gunn não busca restringir o conceito de “sexo” a uma dicotomia de “masculino” e “feminino”. Essa crítica evidencia a existência da masculinidade tóxica, que é caracterizada por uma mentalidade que suprime as diversas expressões de “masculinidades” em favor de uma definição restrita de “masculino”, imposta principalmente por homens privilegiados, brancos e heterossexuais.

O personagem estimula a discussão sobre o verdadeiro significado de ser homem. Será que isso implica em ter um “bom senso de vestir” para um homem heterossexual, ter uma voz grave, praticar esportes e usar roupas de cores neutras? Esses estereótipos são convincentes? Eles estão profundamente enraizados nas pressões impostas para se adequar a um padrão de “homem de verdade”. Se aplicarmos esses estereótipos a ambientes que promovem uma típica “cultura masculina”, podemos perceber a fragilidade masculina se manifestando por meio de insultos homofóbicos, tais como “isso parece gay” ou “você é tão gay”.

Além disso, o Fred de Gunn também explora os comportamentos narcisistas presentes em nosso meio. Ele personifica o narcisismo patológico, uma condição mental que resulta em um aumento do ego e distorções na percepção de si mesmo, evidenciando uma obsessão exagerada consigo mesmo em detrimento dos outros. Indiretamente, Gunn aborda essas questões de maneira perspicaz.

Velma Dace Dinkley

Com a interpretação brilhante de Linda Cardellini como Velma, aprendemos que é possível ser forte e frágil ao mesmo tempo. Através desse personagem, Gunn critica a sociedade hipernormativa na qual vivemos, onde somos constantemente pressionados a ser eficientes, jovens e dinâmicos – em resumo, perfeitos! Qualquer manifestação de emoção ou autoquestionamento não é bem vista. Estamos sempre buscando maior eficiência, e estamos caminhando para nos tornarmos seres humanos-robôs. Infelizmente, o homem sensível e vulnerável não é popular, o que é lamentável.

Ao longo do filme, Velma nos ensina a não nos levarmos tão a sério, a não fingirmos ser sempre os mais fortes, mas sim a aceitarmos quem somos com humor. Não se trata de zombar de si mesmo, mas sim de se aceitar com todas as suas qualidades e defeitos. Acredito que, ao fazermos isso, podemos transformar nossa fragilidade em força. Ao se aceitar como você é, com seus pontos fortes e fracos, você aceita a si mesmo por completo. A fragilidade faz parte de todos nós. Dentro de cada um de nós, existem sensibilidades e fortalezas, todos temos a capacidade de nos permitir ser frágeis. Essa é a verdadeira essência da força. Tudo se resume a uma questão de autoconhecimento.

Estrutura simples

Sendo direto, a realização de Raja Gosnell é fiel à fórmula da série, evitando adicionar referências modernas desnecessárias. Permanece na zona de conforto que o tornou famoso com filmes como “Vovó Zona”, “Os Seus, Os Meus e os Nossos”, “Perdidos pra Cachorro” e “Os Smurfs”. Estilisticamente, não se destaca, mas é visualmente agradável. É o tipo de filme que podemos assistir despreocupadamente no sofá e aproveitar, mas tecnicamente deixa um pouco a desejar.

Em síntese, o argumento de Gunn evita o uso excessivo da cultura pop, tornando o filme atemporal. Apesar dos conflitos entre os personagens, é evidente a química genuína entre o elenco e a camaradagem compartilhada dentro da equipa Mystery Inc., o que se alinha com o espírito do material original. Embora os efeitos visuais de Scooby-Doo possam parecer datados, a energia e interação entre Matthew Lillard e o cachorro Scooby-Doo são mais realistas do que muitos filmes similares atualmente.

Sempre será um clássico

Apesar de Scooby-Doo não ser amplamente considerado um padrão de excelência para o entretenimento familiar, ele consegue se apegar às suas origens e interpretá-las de maneira competente, algo que é um desafio para muitas outras adaptações em live-action, em especial as da Disney.

O longa consegue acertar ao encontrar um equilíbrio entre fidelidade, construção estilística e o tom satírico, proporcionando uma obra clássica e quase unanime. É nítido que a versão de Raja Gosnell modernizada de Scooby-Doo, mas não se esforça para enfatizar demais sua modernidade e posterior perenidade, o que é uma bênção considerando o cenário atual do cinema pós 2010, onde mês a mês somos bombardeados por filmes médios.

Embora o sentimento nostálgico persista, filmes como “Scooby-Doo” têm sido amplamente negligenciados na atualidade, resultando na percepção de que não justifica o investimento para assisti-los nas telonas. É evidente que a maioria das produções da franquia são lançadas diretamente em plataformas de streaming, como o Now e uma variedade de outras disponíveis. Contudo, é importante reconhecer a realidade: dificilmente haverá outro filme capaz de cativar o grande público com o mesmo encanto.

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Vanderlei Tenório

Vanderlei Tenório é colunista dos jornais Tribuna do Sertão e Gazeta Regional de Jaguariúna, dos portais 082 Notícias e JB Notícias, do Web Jornal O Estado RJ – OERJ, colaborador do portal Repórter Nordeste, da Revista Alagoana, do jornal Tribuna de Itapira e do site português Cinema7Arte, além de editor da página Cinema e Geografia. Siga o jornalista no perfil pessoal, como colunista e em Cinema e Geografia.
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