Simplesmente eu, minhas amigas e Clarice Lispector

Antonio de Medeiros

****Colaboração de Patty, A Crítica Bipolar****

Já faz certo tempo que tenho convidado minhas amigas, as que ainda estão vivas, para irmos ao teatro. Cada hora elas inventam uma desculpa para não ir, a mais atual é o medo do quebra-quebra dos “Block Busters”. Disse pra elas que não somos agência bancária pra temer manifestantes encapuzados. Muitas xícaras de chá depois, consegui convencê-las a fretarmos uma van para vermos a peça Simplesmente eu, Clarice Lispector, que está em cartaz no Fashion Mall.

Laurinda, minha amiga da época do Instituto de Educação, quase fez com que perdêssemos a hora. No meio do elevado do Joá, percebi que ela estava muito quieta, absorta olhando pela janela da van e sequer me ouvia. Tive medo dela ter aquele treco da velhinha do filme “Amour”, então comecei a cutucá-la com minha bengala e a falar com ela. Ela gritava para eu falar mais alto, foi aí que ela percebeu que havia esquecido o aparelho de surdez em casa e pediu para voltarmos. Ficar sem o aparelho de surdez é uma sensação muito ruim: é como ver a novela com a tecla mudo apertada.

Como sempre eu tenho que resolver tudo, percebi que Natânia usa dois aparelhos de surdez, mandei que ela emprestasse um pra a amiguinha, ela relutou bastante. Natânia nunca aprendeu a dividir as coisas com as amigas. Já que com a educação não funcionava, eu tive que fazer justiça com minhas próprias mãos. “Que brinco lindo, Natânia!”- disse , e ela toda vaidosa balançava a cabeça, aproveitei o ensejo e pincei o aparelho dela e pus na Laurinda. Problema resolvido!

Simplesmente Clarice (Foto: Divulgação)

Simplesmente Clarice (Foto: Divulgação)

Ingressos comprados, nossa fileirinha de cabeças brancas, exceto por Laurinda, que quando nova era loira de farmácia e agora velha ou é cabeça de repolho ou usa um vermelho acaju, que em nome da nossa amizade eu prefiro ficar quieta. Eu amo minhas amigas, mas não posso faltar com a verdade.

A peça é deslumbrante! De um bom gosto só encontrado na simplicidade do que é feito com paixão e dedicação. Eu conheci a obra de Clarice quando ainda era normalista. Li “Perto do Coração Selvagem” com verdadeiro êxtase. Depois li “Água viva” e fiquei tão louca como se tivesse cheirado um baseado. Eu nunca usei drogas, porque pra “dar uma onda”, como diz Fernandinho meu sobrinho, eu só preciso abrir um livro de Clarice. Viajo e vejo o mundo pelos meus sentidos. Sim, meus sentidos ficam aguçados do real. Vejo minha gata ou tomo um gole de whisky saboreando a potência da existência.

A peça é uma caixinha de biscoitos finos: figurino, cenário, texto, luz e claro, a Beth Goulart. Beth deixa Clarice ser. É muito bonito quando um ator é instrumento de sua arte. Durante toda a peça, vamos saboreando o maravilhoso texto com muita profundidade e humor com os quais Clarice/Beth nos revelam o mundo e a si mesma. A gente se reconhece nela, em sua descoberta do mundo e sua capacidade de deixar ser. Imperdível!

*CRÉDITOS DA ILUSTRAÇÃO: Ilustrices.

Antonio de Medeiros

Antonio de Medeiros apenas digita os textos entregues pela própria Patty, ou por seu sobrinho Fernandinho, em papeizinhos escritos à mão (cartõezinhos amarelados de fichamento) ou datilografados, às vezes manchados de café ou quase sempre de whiskey. Ela me fez prometer que eu não modificaria nem uma única vírgula. De modo que não me responsabilizo por sua opinião e pitacos. (Antonio De Medeiros é formado em Turismo pela UniRio. Atualmente, é funcionário público. Passou pela CAL e pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Ama Cinema, Literatura e Teatro. Sonha em ser escritor. Enquanto escreve peças e um romance, colabora para o site "Blah Cultural")
NAN