Ao Seu Lado
Crítica do filme
Possivelmente eu fui umas das poucas pessoas que chorou vendo Bacurau, porque ele é intenso e visceral. Ele fala de um Nordeste que o Sudeste desconhece. De um Brasil que o Brazil desconhece. Justamente por isso, Bacurau não é fácil. E quem disser que entendeu e não gostou é porque possivelmente faz parte do Brazil que não merece o Brasil, como cantou Maurício Tapajós e Aldir Blanc.
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O terceiro longa-metragem de Kleber Mendonça Filho e o primeiro de Juliano Dornelles começa como tem que ser: provocativo. De longe vemos o universo e o planeta Terra, que, pasmem, não é plano (!), surgir para em seguida nos levar a uma cidade no “cu do mundo” chamada Bacurau. E essa cidade existe para lembrar que, mesmo no Brasil profundo, sem água, sem justiça e sem representante político que a valha tem ainda sertão, suor e muita luta. Sem saber disso de antemão, não dá para compreender a dimensão de um Brasil do Norte que morre, mas também mata.
O filme é uma preciosa alegoria do Brasil que se transformou em Brazil. Que se rifou e deixou rifar aos interesses estrangeiros à custa de vidas humanas. Em troca, o Brazil recebe nada mais do que desprezo. Em Bacurau, a narrativa leva um fim mais louvável, mais heroico, mais digno de quem tem como herança a resiliência do cangaço. Podemos ainda pensar na obra cinematográfica como uma alegoria muito mais pelo que não é do que pelo que é.
Explico-me. Nada há de caricatural em uma cidadezinha do interior do Nordeste que tem uma travesti casada e adúltera que não é julgada pela comunidade; uma médica na casa dos 60 anos lésbica e respeitada por todos; um grupo de assassinos caçados pelos de fora, mas acolhidos pelos de dentro; um puteiro onde todos conhecem as putas e não lhes jogam pedra; de um povo que se une para lutar pelos seus. O alegórico é pensar que esse lugar existe e que, apesar de desconhecida a sua força, é a única capaz de salvar o Brasil, inclusive do próprio Brazil.
Nessa cidade, que é Bacurau, mas que poderia ser qualquer outra do Nordeste do país, o preconceito não ter acolhida parece surreal e aos olhos do Brazil do Sul, incompreensível. E é preciso evidenciar que o filme é explícito em mostrar que há uma distância grande entre os dois Brasis. De um lado, um que resiste, mesmo sem recursos. Usa as armas que tem e, dentre elas, a mais potente é a união, o respeito e a humanidade. De outro, há um que ‘se acha’, que se pensa mais europeu do que brasileiro, que se humilha a troco de nada e que aceita a aniquilação física de seus conterrâneos.
Mas, para além do que é explícito, boa parte de entender Bacurau é aceitar que ele não é óbvio. E nem tinha como ser: o “Brazil não conhece o Brasil”. Não conhece a falta d’água, porque o poder público a vendeu para os poderosos; não conhece os mantimentos e remédios que só chegam no período eleitoral e fora do prazo de validade; não conhece a morte do seu povo, porque quem falou que os ia ‘proteger’ se rendeu ao capital estrangeiro; não conhece o esquecimento e ao mesmo o direito de constar no mapa, de também existir para o mundo dos outros.
Duro. Bacurau é duro como precisa ser. Por isso, ele pode parecer não palatável para alguns. Para esses posso tentar convencê-los a ir ao cinema dizendo que é um thriller, como afirmou o próprio Kleber Mendonça. Sem economia de mortes e com adição extra de tensão e ação – quase uma espécie de “Mad Max” do cangaço. Mas sendo bem sincera – e respeitosamente discordando do diretor -, não se trata de um thriller, pelo menos, não de um mero thriller. Bacurau, assim como “Aquarius”, é um protesto, uma crítica, um alerta, bem como um aviso. É um filme que para quem é do Brazil, mas ainda assim não precisa de uma analogia cinematográfica estrangeira para convencê-lo. Deve vê-lo para aprender porque não matar o Brasil. Falar mais do que isso é revelar muito do que é mais bem apreciado no cinema.
Por fim, aprendemos que o Brasil que não é o Brazil é aquele que entende o estrangeirismo deste, mas fala na sua língua própria. Quem quiser que entenda! Conhece a tecnologia do forasteiro e faz bom uso dela. Apesar da simplicidade, não se deixa enganar por um drone, ainda que ele mais pareça um disco voador. Bacurau não se trata de mostrar quem é melhor ou pior, afinal de contas todos nós temos nossos pecados, mas de alertar que a subjugação de quem se entende ser o lado fraco pode surpreender e o caçador virar caça. Para mim, é um lindo grito de esperança e qualquer semelhança com a realidade não é mera coincidência. Pelo menos não para mim.
Título original: Bacurau
Direção: Kleber Mendonça Filho, Juliano Dornelles
Elenco: Barbara Colen, Sonia Braga, Udo Kier
Distribuição: Vitrine Filmes
Data de estreia: qui, 29/08/19
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 2018
Duração: 132 minutos
Classificação: 16 anos