Ao Seu Lado
Crítica do filme
Enfim, o filme do Coringa (Joker) chegou. No entanto, por mais que pareça paradoxal ou dúbio, nem toda piada deve ter graça. Ao tomar tons críticos e de sátira, uma piada pode partir para um tom mais reflexivo, por mais que faça alguns ainda assim, rirem. Afinal, poucas coisas são tão subjetivas quanto gosto e humor.
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Neste cenário, Todd Phillips nos traz Coringa. A polêmica história de origem do maior vilão do Batman surge pelas mãos de Joaquim Phoenix em um drama pesado, violento e surpreendente. Em suas duas horas de filme, acompanhamos a saga de Arthur Fleck em passar de um aspirante a comediante, até o grande palhaço do crime.
A saber, o filme é assertivo em nos trazer para os anos 80, em uma Gotham City que, em muito, remete à real Nova Iorque da época. Com a grande sujeira, violência e marginalização mostrada em filmes como “Os Selvagens da Noite” (The Warriors) e “Taxi Driver”. A cidade, muito mais do que em alguns filmes do Homem-Morcego, é tratada como um personagem. Uma ilha de violência isolada, onde o meio e os personagens que a comanda influenciam diretamente no temperamento explosivo dos moradores. Com todo este cuidado de roteiro em mostrar diversas partes da cidade, focando no excesso de lixos nas ruas, no comércio falido, nas periferias e, principalmente, nos constantes noticiários, torna crível o apoteótico levante deste vilão em um mundo completamente palpável.
Arthur Fleck nos é apresentado como um palhaço que faz trabalhos agenciados de animação em hospitais e anúncios de liquidação em lojas. Tentando sair desta mediocridade, ele decide investir na carreira de humorista de stand-up. Um detalhe interessantemente mórbido desta parte é a escolha do nome do local como Pogo’s. Entre meados dos anos 70, Pogo era conhecido como O Palhaço Assassino John Wayne (sim, Wayne, você não leu errado), acusado de matar, estuprar e torturar 33 pessoas em Chicago. Esta comparação acaba se agravando com a similaridade entre as maquiagens de Pogo e a utilizada pelo Coringa, que seria replicada nas máscaras de seus seguidores.
Além do ambiente hostil que o rodeia e, constantemente, humilha e agride o personagem central, dois outros fatores agravam sua condição mental. A primeira, é o afeto pseudobulbar, onde o personagem sofre com crises de riso involuntário, doravante de um distúrbio psicológico que tira o controle de manifestações de emoções. A outra, ocorre, como em muitos casos, por conta de agressões e abusos ocorridos na infância, o que inclusive ocasionou a lesão cerebral que desencadeou o distúrbio.
Com estas justificativas para seu estado mental afetado, acabam criando uma espécie de pena sobre o personagem que põe a culpa de seus atos violentos na falta de empatia da sociedade atual. Como um grande ciclo vicioso onde a violência torna as pessoas mais fechadas e causando ainda mais violência. Isto pode até ser um ponto negativo no roteiro ao beirar o limite do didatismo em diálogos expositivos. No entanto, acaba passando batido pelos momentos em que o filme flerta com a possibilidade de mudar completamente a história dos personagens ao tornar Coringa e Batman irmãos (fato desmentido em um plot twist do plot twist), e ao tornar todo o plano de suicídio televisionado (em conversa com o filme “Rede de Intrigas”) em uma grande onda dos grandes assassinatos que ocorrem no filme, justificando sua classificação.
A direção de Todd Phillips é um dos grandes atrativos do longa. A fotografia, a composição de cores, os ângulos abordando cada vez mais a quebra de sanidade do personagem, mesclando realidade e imaginação no grande estilo “Clube da Luta”…. Em suma, a forma como foi extraído ao máximo, mesmo dos atores de histórico mais singelo, e a forma como o filme mescla drama, terror e comédia em um ambiente lúdico, pode com certeza dar a Phillips algumas indicações por seu trabalho atrás das câmeras.
As condecorações à atuação de Phoenix atingem as grandes expectativas. Mostrando o ápice de um ator do método em uma completa entrega ao papel de trejeitos marcantes e vícios que constroem partes de sua insanidade gradativa. Por fim, outro ponto que merece destaque nas vindouras premiações está atrelado ao som do filme. Tanto em mixagem nos grandes momentos de levante e quebra das músicas bem escolhidas – e como elas passam sem incomodar os diálogos – até a edição com os mínimos detalhes de tudo ao redor compondo perfeitamente esta orquestra.
Falando em orquestra, um dos pontos que podem remeter diretamente o trabalho de Phoenix ao do saudoso Heath Ledger, fica pela trilha sonora de Hildur Guðnadóttir, a violoncelista islandesa que compôs uma trilha crescente e insana que em muito lembra os temas usados por Han Zimmer em “O Cavaleiro das Trevas” (2008).
Coringa vale o ingresso para que se tenha uma completa imersão nesta grande transformação de um homem comum em um grande vilão sanguinário. Algo que não víamos desde “Breaking Bad”. O filme acerta em se desligar de um universo compartilhado, apesar de entregar aos fãs vários momentos icônicos retirados completamente das HQs, como o palco do stand-up, bem como o colar de pérolas, a citação de tudo ocorrendo por causa de um dia ruim, além dos vários televisores mostrando o apocalíptico clímax do longa.
De fato, a origem do palhaço do crime de Gotham encontrou sua versão definitiva, indo contra aos preceitos da versão de Christopher Nolan em mantê-la obscura e de trazer a violência discreta sem mostrar sangue. A obra de Phillips é uma grande entrada dos filmes baseados em quadrinhos como algo bastante direcionado ao público adulto, o que pode mudar bastante os próximos anos do gênero.
Enfim, recheado de sangue, humor e lágrimas borrando maquiagens…. isso é a vida!