O Outro Lado do Paraíso, segundo longa-metragem de André Ristum – premiado diretor de “Meu País” – estreia na mostra competitiva do Festival do Rio contando a história, baseada em fatos reais, de uma família de brasileiros anônimos que vai para Brasília em 1963 e tem seus sonhos esmagados pelo golpe militar de 1964. O filme, com refinada e cuidadosa reconstituição da época, é baseado em livro autobiográfico do escritor mineiro Luiz Fernando Emediato, que tinha 12 anos de idade quando os fatos aconteceram e é interpretado pelo menino Davi Galdeano, notável revelação de ator. É ele – numa mistura de admiração, amor, dor, orgulho e tristeza – quem conta a história do pai, Antonio Trindade, um sonhador aventureiro que tem sua vida marcada pela busca de um sonho, o paraíso na terra, o “país de Evilath” citado nos primeiros versículos do Livro do Gênesis, no Antigo Testamento.
Para contar a saga de Antonio pelos olhos do filho, a produção do filme – dividida entre a Mercado Filmes, de Nilson Rodrigues, e a Geração Entretenimento, do próprio Emediato – teve que construir uma cidade cenográfica de quase 20 mil m² nos arredores de Brasília, além de usar bastante computação gráfica para reconstituir parte de Brasília como ela era – em plena construção – há 50 anos. Foram usadas também imagens históricas do documentário “Contradições de uma cidade nova” de Joaquim Pedro de Andrade e outras, jornalísticas, de Jean Manzon, até então jamais exibidas – imagens dramáticas dos tanques e dos soldados nas ruas de Brasília, São Paulo e Rio, logo após o golpe militar ter sido deflagrado, no dia 1º de abril de 1964.

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A cidade cenográfica reconstitui parte de Taguatinga, na época um aglomerado de barracos de madeira em ruas empoeiradas, na periferia do Distrito Federal e hoje uma cidade de porte médio. Foi lá que viveu, em 1963, a família de Emediato, liderada pelo pai visionário que se desentende com o sogro fazendeiro e sai do interior de Minas Gerais em busca de uma nova vida na capital que estava sendo construída. O livro foi escrito quase 20 anos, depois, em 1981 e o filme nele baseado só agora, 33 anos depois e exatos 50 depois dos fatos narrados.
Diretor do premiado “Meu País” (seis troféus no Festival de Brasília, incluindo melhor direção e melhor ator para Rodrigo Santoro e escolhido melhor filme do ano no Prêmio SESI/FIESP 2012), André Ristum aceitou o desafio de levar esta história para as telas. Segundo André, a trama tem duas grandes afinidades com ele. A primeira é a relação entre pai e filho, tema presente também em seu filme anterior.
“Isso me interessa muito sempre”, disse. A segunda é o golpe militar, que ele afirma ter atravessado sua vida: “Eu nasci e cresci fora do Brasil por causa disso”, explicou o diretor. Sobre o tema, André inclusive já assinou um documentário, “Tempo de Resistência”, de 2004. “É um assunto que me interessa muito, especialmente agora que o golpe completou 50 anos”. André nasceu em Londres, de pai brasileiro e mãe italiana. E em Roma chegou a ser assistente de direção de Bernardo Bertolucci no filme “Beleza Roubada”.

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Para montar a narrativa de O Outro Lado do Paraíso, que faz uma reflexão sobre um momento determinante da história brasileira – e que foi uma produção relativamente cara para os padrões brasileiros, custou R$ 8,5 milhões – André convocou um elenco de peso, que inclui Eduardo Moscovis, Simone Iliescu, Jonas Bloch, Flávio Bauraqui, Camila Márdila, Iuri Saraiva e os jovens atores David Galdeano, Taís Bizerril, Maju Souza e Henrique Bernardes, além de um time de nomes experientes do teatro e do cinema de Brasília, como Murilo Grossi, Adriana Lodi e Bidô Galvão, além da jovem atriz e cantora Stephanie de Jongh. O ator Luiz Melo faz a voz de Nando adulto, que narra a história. O elenco somou cerca 60 atores e atrizes e 1.200 figurantes.
O livro O Outro Lado do Paraíso, publicado por Emediato em 1981, teve inicialmente um formato juvenil e foi desde 1984, com a redemocratização, adotado em escolas de todo o país, tendo vendido aproximadamente 200 mil exemplares. Na elaboração do roteiro, que o autor acompanhou desde o primeiro tratamento até o tratamento final, de número 14, ele teve que recorrer a suas memórias para incluir novos personagens e situações. A história real da transferência de sua família do interior da pequena Bocaiúva, no paupérrimo Vale do Jequitinhonha, em Minas Gerais, para Brasília, o Eldorado para onde acorriam aventureiros em busca de riqueza e ascensão social, foi enriquecida com alguns personagens de ficção criados pelo roteirista final e pelo próprio diretor.
Se a história é narrada sob a ótica de Nando, um menino de 12 anos (vivido por Davi Galdeano), também, em off, surge a voz do escritor já adulto e nostálgico. São os dois – a criança, no passado, e o escritor, no presente – quem narram as peripécias das crianças envolvidas na história e as aventuras do pai Antonio (vivido por Moscovis). Antonio, o brasileiro sonhador e aventureiro de 37 anos que nunca tivera emprego fixo e vivia viajando por garimpos e sonhando com a “terra prometida”, acaba identificando esse “paraíso” com o novo Brasil que surgiria após as reformas prometidas pelo presidente João Goulart. O golpe de 64 transforma os sonhos da família em pesadelo, mas, para Nando, é também uma lição de vida que marcaria para sempre sua vida e sua obra literária.

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O roteiro final de O Outro Lado do Paraíso leva a assinatura de Marcelo Muller, roteirista do aclamado “Infância Clandestina”, filme argentino que recebeu excelentes críticas nos festivais de Cannes, Havana, Toronto e San Sebastián, entre outros. O texto final contou ainda com a consultoria do escritor cubano Senel Paz, autor de “Morango e Chocolate”, indicado ao Oscar e com vários prêmios internacionais, como o Urso de Prata de Berlim e o Goya.
Para o produtor Nilson Rodrigues, da Mercado Filmes, o filme é uma metáfora do sonho interrompido: “É um belo conto, que fala de um período de grandes esperanças em Brasília e no Brasil. Mas também fala do sonho interrompido pelo Golpe Militar de 1964, a partir da perspectiva de uma família comum, que planeja reconstruir sua vida na nova Capital, suas expectativas e emoções”. E acrescenta: “Essa família não desiste de seus sonhos. É um pouco como o País, que não desistiu e se redemocratizou. A experiência frustrada dessa família reflete a experiência frustrada do Brasil, que naquela altura tentava se modernizar e teve o processo interrompido pelo Golpe”.
Este é o segundo filme brasileiro adaptado da obra de Luiz Fernando Emediato. Em 1984 ele teve seu conto “Verdes Anos” levado para o cinema com direção de Carlos Gerbase e Giba Assis Brasil, e premiado com o Prêmio Revelação no Festival de Gramado. “Trata-se de um filme que eu gostaria de refilmar, com um roteiro mais complexo, e para revelar o que aconteceu com os personagens do filme do André Ristum”, diz Emediato, acrescentando: “Alguns de meus amigos foram para a luta armada, outros para as artes e a política, e eu, ironicamente, além de me ter tornado jornalista, escritor e editor, acabei recentemente
ajudando no governo da presidente Dilma um dos netos de um dos personagens históricos deste ‘O outro lado do paraíso’, Leonel Brizola. A História às vezes nos surpreende”.