Ao Seu Lado
Crítica do filme
Ao assistir o ótimo Meu Amigo Bussunda, em cartaz no Globoplay, lembrei de outro documentário dirigido por Claudio Manoel, ‘Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei’, de 2009, que também está na mesma plataforma de streaming. A lembrança se deu também por causa de outro assunto que foi debatido em um dos nossos podcasts, que é a cultura do cancelamento. Wilson Simonal, talvez tenha sido o primeiro grande nome da cultura brasileira a ser cancelado. E o preço que ele pagou foi altíssimo.
Para quem não se lembra, Wilson Simonal foi um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos. Principalmente nas décadas de 1960 e 1970 quando gravou seus principais discos e encantava multidões graças ao seu talento musical e carisma incomparável. Simonal era, em suma, um gigante. Capaz de ofuscar grandes nomes nacionais ou internacionais que se apresentassem depois dele no mesmo palco.
Pena que no auge do sucesso, uma confusão o transformou em um pária, fazendo com que ele morresse “duas vezes”. A primeira, ainda em vida, com o esquecimento dos fãs, amigos e parceiros. A segunda e definitiva, por uma cirrose hepática contraída pelo alcoolismo, vício que cultivou ao cair no ostracismo.
Ao contrário de muitos documentários sobre um determinado artista, em ‘Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei’ não vemos a tradicional passada de pano ou tentativa de fazer um trabalho chapa branca. Muito pelo contrário, com depoimento de diversos artistas, como Pelé, Chico Anysio, Tony Tornado, Nelson Motta e Luís Carlos Miele, entre outros, vemos que o racismo estrutural é algo que está enraizado no Brasil. Segundo alguns desses deponentes, conhecemos a dimensão do tamanho que Simonal tinha. Mas, principalmente, como um homem preto com essa importância incomodava muito a alta sociedade branca da época.
Além disso conta com depoimentos de Ziraldo e Jaguar, dois fundadores e integrantes do lendário jornal O Pasquim, que foi importantíssimo no período de luta contra a Ditadura Brasileira e, ao mesmo tempo, um dos veículos que mais repercutiram a confusão envolvendo Simonal e, assim, um dos responsáveis indiretos pela sua segunda morte.
O ponto alto de ‘Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei’ é justamente a confusão envolvendo o contador do artista. Na época, Simonal era conhecido como o “rei da pilantragem”. A pilantragem era um “movimento” criado pelo cantor, bem como pelo seu parceiro Carlos Imperial que cultuava o estilo bon-vivant que eles gozavam. Em suma, apenas uma brincadeira. O problema é que essa brincadeira foi longe demais. A ostentação se dava justamente na época mais dura do regime militar, ou seja, quando a morte e exílio de diversos colegas de profissão era algo comum e Simonal era alheio a tudo isso. Chegando, inclusive, a gravar País Tropical para embalar a Seleção Brasileira de 1970 e reforçar a campanha positiva do regime cruel que imperava no Brasil.
Além disso, ostentação custa dinheiro. Simonal ganhava milhões e gastava mais do que arrecadava. Uma hora a conta chega e quando foi informado pelo contador que estava quebrado, o artista não tinha dúvidas: estava sendo enganado pelo profissional. Ao invés de apurar os fatos, Simonal tomou a pior das atitudes. Aproveitou a proximidade com o governo, chamou dois agentes do DOPS – o órgão mais terrível do regime militar – para espancar o contador.
Corretamente o corretor denunciou o espancamento que sofreu, assim como responsabilizou justamente Simonal que cometeu o seu segundo erro e este, fatal. Na presença do delegado ele confirmou o caso e, para piorar, se colocou como “colaborador do regime”. A notícia caiu, dessa forma, como uma bomba. Artistas que perderam amigos para o Regime Militar se recusavam a dividir o palco com Simonal, emissoras de TV, rádios e jornais passaram a boicotar o cantor e o Pasquim infernizou a vida do cantor, colocando nele o apelido de dedo-duro. Apelido que, a saber, o acompanhou pelo resto de sua vida.
O grande mérito do documentário foi justamente conseguir entrevistar o contador que sofreu as agressões dos agentes do DOPS. Desde o caso, ninguém conseguiu encontrá-lo ou ter algum depoimento durante décadas. E mesmo no documentário, enquanto falava, é possível ouvir a esposa dele pedindo para não falar nada e esquecer essa história.
Após a revelação do caso, Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei deixa de lado o tom alegre e musical e passa, assim, para o lado mais dramático e pesado. Justamente nessa parte, pesam os depoimentos dos filhos do cantor – Max de Castro e Simoninha –, assim como o da segunda esposa do artista, Sandra Cerqueira. É justamente dela a frase mais impactante do documentário, quando Simonal, incrédulo com a sua situação, bem como cansado do esquecimento desabafa: “Sandra, eu não existo na história da música brasileira”.
Ela ainda vai mais a fundo, quando, em suma, lembra da luta de Simonal pela obstinação em limpar o seu nome e provar que jamais foi dedo-duro do Regime Militar e quando lembra o início da carreira musical de Max de Castro e Simoninha. Revelando que, muitas vezes, o artista ia sem avisar e, além disso, se escondia atrás de pilastras para ver os filhos cantando, sem correr o risco de prejudicá-los.
Por fim, embora Simonal – Ninguém Sabe o Duro que Dei não tenha como objetivo fazer uma reparação à história de Wilson Simonal, é inegável que ele, pelo menos, tenha devolvido, de certa forma, a dignidade que este que é um dos maiores artistas brasileiros de todos os tempos merecia. E, principalmente, revelar que Wilson Simonal não apenas existe como é um dos nomes mais importantes da história da música popular brasileira.
Título original: Simonal: Ninguém Sabe o Duro Que Dei
Direção: Calvito Leal, Cláudio Manoel, Micael Langer
Elenco: Chico Anysio, Nelson Motta, Ricardo Cravo Albin, Ziraldo, Luis Carlos Miele, Pelé, Simoninha, Max de Castro, Sandra Cerqueira
Onde assistir: Globoplay
País: Brasil
Gênero: Documentário
Data de estreia: 15 de maio de 2009
Ano de produção: 2008
Duração: 86 minutos
Classificação: livre