O racismo nada velado em ‘Them’, série da Amazon

Cadu Costa

A nova série da Amazon Prime, Them vem contar uma história assustadora sobre o passado para nos levar a um novo futuro. Pensada como uma antologia criada por Little Marvin, a série, em suma, é sobre raça, mas é um show de terror por completo. Porque ela revela uma realidade que é aterrorizante.

Primeiramente, Them abre com um prólogo num tom gloriosamente apavorante. Uma mulher preta e seu bebê estão sozinhos em uma casa isolada quando uma senhora aparentemente inofensiva desce a rua em direção a eles. Ela menciona que “nós” vimos o marido da mulher ir embora e começa a cantar sobre “Old Black Joe”.

Sombras da escravidão

Them

Ao ouvir o bebê, ela se anima e pergunta: “Posso ficar com ele? Seu menino? Eu gostaria muito dele. ” Seria assustador, mas o fato da mulher cujo bebê ela pede ser preto acrescenta uma dimensão histórica de horrores ao encontro. Sombras de escravidão, bebês tirados de mães e a vulnerabilidade inevitável – até mesmo a forças sobrenaturais malévolas – causada por ter uma certa cor de pele em um determinado país em um determinado momento vêm instantaneamente à mente.

A maior realidade da série criada que parece implacavelmente clara é a violência. Todos os dias, todos nós discordamos em questões de dano e impacto. Esse sempre foi, em suma, o problema com a conjunção “micro agressão”: como o prefixo “micro” falha em expressar adequadamente a imensidão de como um olhar, um sorriso, uma piada, uma canção, uma dança, uma boneca, podem ser facilmente transformados em armamento racista, e como esta metodologia é projetada com espaço para negabilidade.

Micro Agressão

Them

Micro Agressão é, em suma, uma redução, uma rejeição do impacto. E falha totalmente em capturar a raiva, bem como a loucura que esses gestos aparentemente pequenos podem provocar ao longo da vida: a ameaça combinada, o trauma composto. A difamação casual de um vendedor (ou cliente), tão casual, tão predominante, para se sentir bem-vindo em um negócio é experimentada assim como uma ocasião de alegria; algo como a sombra da conquista.

A micro agressão como um descritor falha em reconhecer o efeito bola de neve: a brancura criando momentum em sua própria matéria, sua própria projeção, sua própria compulsão de consumir, bem como destruir tudo em seu caminho. E isso é conseguido em suma pela recusa em nos deixar respirar. Para nos deixar ser humanos. Em outras palavras, um desejo de nos transformar em monstros.

A Grande Migração

A terminologia existe para isso agora – a lacuna da raiva. Mas durante o período de meados do século XX nos EUA conhecido como A Grande Migração, época em que os afros-americanos fugiam dos horrores de Jim Crow apenas para se depararem com outras violentas populações brancas em todo o país. E a raiva não era uma emoção que podiam se dar ao luxo de expressar. Mas havia muito o que ficar com raiva (ainda há muito o que ficar com raiva).

E é neste cenário que somos apresentados aos personagens da Família Emory. Marido e mulher, Henry (Ashley Thomas) e Lucky (Deborah Ayorinde), e suas filhas, Ruby Lee (Shahadi Wright Joseph) e Gracie Jean (Melody Hurd), estão a caminho de sua nova casa idílica no bairro de East Compton em Los Angeles, então um farol do projeto suburbano de classe média-alta, eugenista, bem como supremacista branca. Henry aceitou um novo emprego em engenharia e, embora o público já saiba que eles deixaram a Carolina do Norte por motivos apenas parcialmente revelados, no carro eles exalam positividade e otimismo.

O novo bairro

O calor de sua esperança é amenizado assim que chegam em seu novo bairro, saudados apenas pelos olhares intensos dos moradores que em breve, em uma reunião fechada, os descreverão como ‘mofo preto’: uma ameaça contaminante e contagiosa.

Os racistas de carne e osso que os Emory enfrentam são o suficiente para aterrorizar. As mulheres se reúnem em silêncio, sorrindo, para colocar cadeiras e mesas de chá fora da casa da nova família, cada uma tocando, assim, estações diferentes em seus rádios para cercar os recém-chegados com uma cacofonia infernal constante. Os homens preferem ação, sob o manto da escuridão.

Racismo no cotidiano

Enquanto Lívia fica presa em casa, Henry precisa enfrentar o mar de rostos profissionais brancos no trabalho (no primeiro dia, a recepcionista insiste que ele deve ir para a cozinha), e as crianças suportam seus próprios sofrimentos na escola. O que marca esse retrato do preconceito dos anos 50 é que, em suma, graças às magníficas performances de Thomas e Ayorinde, você tem uma grande noção do custo para as vítimas. A quantidade absoluta de energia mental necessária para navegar em um mundo hostil implacável, bem como a exaustão consequente e o desgaste constante da alma.

O horror

Se Them, do Amazon Prime Video, tem uma fraqueza como uma história de terror, é, em outras palavras, que o material sobrenatural é realmente uma bagatela. Afina, cada membro da família é assombrado por um fantasma diferente. Gracie Lee é uma figura de governanta vitoriana de seu livro favorito, enquanto Henry é um fantasma em blackface. Todos os quais são, em suma, manifestações do descontentamento da casa e, claro, uma metáfora para tudo que há do lado de fora.

Eles fornecem alguns jump scares eficazes, mas ainda não podem competir com o sorriso sem afetação no rosto da vizinha branca Betty (Alison Pill) enquanto ela canaliza sua energia abundante para tornar a vida dos Emorys um pesadelo acordado.

O sonho americano

Por fim, Them é um programa do abertamente preocupado com o conceito do sonho americano: a quem se aplica, a quem não se aplica, como não se aplica. Aliás, este mesmo sonho americano é analisado através das lentes do terror e da escuridão subjacente a esse sonho. Para conseguir isso, o show reimagina a casa mal-assombrada localizada no subúrbio e, assim, nos apresenta uma forma genuína de horror. Afinal, o que significa uma casa ser mal-assombrada, sim, mas não apenas uma casa – um contrato de aluguel, uma religião, um bairro, uma cidade, um país e sua cultura?

Antes de mais nada, é preciso lembrar que Them foi concebido e encomendado pelo Amazon Prime Video durante a presidência de um homem que chegou ao poder nas costas daqueles que ansiavam por um retorno aos anos 50 e ao sonho americano. Assim, só podemos imaginar o horror de assistir a isso se ele tivesse vencido novamente. Pesadelos acordados, de fato.

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TRAILER

https://www.youtube.com/watch?v=WL3Jz8fDgFI

FICHA TÉCNICA DE ‘THEM’ (AMAZON)

Título original: Them
Temporada: 1
Episódios: 10
Duração: aproximadamente 45 minutos cada episódio
Data de estreia: sex, 09/04/21
Criação: Little Marvin
Elenco: Ashley Thomas, Deborah Ayorinde, Shahadi Wright Joseph, Melody Hurd, Alison Pill, Ryan Kwanten
Onde assistir ‘Them’: Amazon Prime Video
País: Estados Unidos
Idioma: Inglês
Gênero: terror, drama
Ano de produção: 2021
Classificação: 18 anos

Cadu Costa

Cadu Costa era um camisa 10 campeão do Vasco da Gama nos anos 80 até ser picado por uma aranha radioativa e assumir o manto do Homem-Aranha. Pra manter sua identidade secreta, resolveu ser um astro do rock e rodar o mundo. Hoje prefere ser somente um jornalista bêbado amante de animais que ouve Paulinho da Viola e chora pelos amores vividos. Até porque está ficando velho e esse mundo nem merece mais ser salvo.
NAN