‘Urubus’ e a arte do picho
Ana Rita
As grandes cidades são cheias de desigualdade, com uma crescente marginalização de grupos sociais. São Paulo é uma dessas cidades. Além da marginalização, são grupos calados, que sofrem com a violência e o descaso do Estado. São vozes que gritam em silêncio e que precisam ser ouvidas.
Habitar não significa apenas residir ou se alojar em um espaço físico. Quando ocupamos um local para moradia, há trocas de cultura, afinal, somos seres humanos e, vivendo em sociedade, nos relacionamos com outros seres humanos, resultando nessas trocas pela convivência. Por mais que se trate de impor ‘ocupações impessoais’, haverá identificação com aquele espaço, ou pela necessidade desta.
Como um anseio de se expressar e ocupar espaços, identificar-se com o lugar em que habitavam, no final dos anos 60, surge na Filadélfia e Nova York, a arte de rua. Muros se tornam telas, paredes são preenchidas e a cidade é ocupada. Na quarta maior cidade do mundo, o picho é uma forte figura que cobre muros e prédios de São Paulo. Ainda persiste uma forte discussão sobre esse tipo de arte, sua unidade artística, se é arte ou apenas ‘vandalismo’.
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28ª Bienal de São Paulo
Durante a 28ª Bienal de São Paulo, o picho foi colocado em um museu, mas isso não foi de forma convencional e com aceitação. Um grupo de pichadores de São Paulo foi responsável pela invasão dessa Bienal, sendo responsável por colocar a arte em outro patamar e dar a ele maior visibilidade no meio artístico.
No vencedor de Melhor Filme Brasileiro Prêmio da Crítica e Melhor Filme Brasileiro Prêmio do Público, Urubus traz parte da história do episódio da Bienal e os artistas por trás dele. Trincha é um jovem que faz parte de um desses grupos de pichadores em São Paulo, escalando altos edifícios e deixando sua arte.
Dirigido por Claudio Borrelli, o longa traz de um bom ponto de vista a necessidade desses grupos de expressar e projetar sua arte para que todos vejam. É a luta pela visibilidade de marginalizados e artistas que fogem da arte elitista e ‘intelectual’, que, mesmo após o Modernismo, promovem o debate sobre ‘o que é arte’.
Marginalização, violência e opressão
“O melhor terrorismo poético é contra a lei, mas não seja pego. Arte como crime; crime como arte” – Hakim Bey
Rapidamente associamos a marginalização com a violência policial. Grupos que não recebem atenção, não têm suas necessidades suprimas, mas sempre têm olhos desconfiados voltados para essa população. Na cena inicial do filme Urubus, essa violência policial aparece como introdução ao contexto que esses jovens artistas estão inseridos. Em preto e branco, com música de fundo como de uma cena de ópera, atenuando o contraste da violência.
Como já disse, muitos associam o picho a um ‘ato de vandalismo’, um uso indevido do espaço urbano. O filme Urubus, que se inspira em fatos reais, nos mostra justamente a luta pelo espaço, pela identificação desses jovens, bem como o ‘status’ de arte do picho. Trincha e seus amigos subindo prédios para fazer um grafite reflete essa necessidade de serem vistos, assim como se enxergarem numa cidade cinza, que dentro de uma sociedade capitalista, é regida por grupos ricos, pela burguesia ‘intelectual’ e por instrumentos de opressão.
Mistura de mundos
As histórias cruzadas de Trincha e Valéria, uma estudante de arte, marcam a mistura desses dois mundos. A estudante que está fazendo um trabalho sobre picho, se envolve com o grupo, conhece sobre a arte e os artistas, e então decidem fazer a performance na Bienal.
Temos uma confusão, violência, e, claro, repressão. Pessoas presentes gritam e aplaudem a ação policial. Aqueles mesmos que estão para ‘apreciar’ a arte. Como amante de arte e estudante de Arquitetura, enxergo esses momentos como um total desconhecimento sobre arte e sua necessidade. Museu deve ser um lugar aberto, e digo isso em todos os sentidos. Aberto ao público e aberto a artistas, a arte se molda pela necessidade humana, seja de criação ou consumo. Taxar o que é arte ou não por estética ou local de produção é ir contra tudo isso.
Picho é vandalismo?
Então, com uma câmera não estática, acompanhamos esses jovens como bons observadores, como se estivéssemos assistindo a um documentário. Somos inseridos nesses ‘corres’ do grupo, nas rivalidades com outros grupos, a competição dentro do picho, quem deixa sua marca nos prédios mais altos e assim tem mais ‘poses’ dentro dessa cidade de poucos donos. O picho é um movimento silencioso dessa busca por voz, identificação e pertencimento dentro da grande metrópole que é São Paulo.
Valéria comenta sobre o picho ser arte, não é só um rabisco. Infelizmente, desde os mecenas burgueses na Europa, consumir arte logo se atrela a um lugar de status, uma posse, um artigo de luxo da elite.
Picho e grafite são artes que iniciam e pertencem às ruas, a posse deles não existe (ou não existia). Um documentário Exit Through The Gift Shop, dirigido pelo artista de rua Banksy, traz essa reflexão sobre o pertencimento e local da arte de rua, principalmente com a relação da arte e seus marchands.
Assim, o dinheiro e comércio dentro da arte é um ponto bastante interessante por definir o que a sociedade taxará de arte, obras vendidas e expostas em museus, em bienais, e seus reais significados (ou não significados), suas intenções e motivações. Portanto, a arte pode ter local ou não, ter voz ou não, ter sentido ou não, ser política ou não.
No caso do picho, seu início na cidade de São Paulo está atrelado ao período da ditadura, justamente um momento de forte violência e repressão, uma tentativa de serem vistos, lidos e ‘ouvidos’ em paredes, muros, pontes e viadutos.
O que é arte?
Já nos momentos finais do filme Urubus, chega uma curadora da Bienal da Alemanha que diz ter interesse em uma exposição com os pichadores. É justamente quando entra esse teor de elite que mencionei anteriormente. É incrível esse interesse pela arte, mas é importante saber como e de onde vem.
Quando a arte de rua surge, ela não nasce para o mercado de arte, mas para ser vista por todos. Afinal, está naturalmente inserida no espaço público. Tanto no sentido de pertencimento quanto no de produção. Uma arte política e acessível.
O picho ganha o mundo e o filme traz o seguinte fato:
“A primeira bienal do vazio em 2008 despertou a curiosidade de curadores e estudiosos do mundo inteiro. Depois disso, a pichação foi a Paris, Londres, Nova Iorque, às bienais de Berlim e Veneza, e de volta a própria bienal internacional de São Paulo. Mas desta vez pela porta da frente. E foi expulsa novamente”.
Então, com o movimento do Dadaísmo, o sentido dá arte é colocado em xeque; assim como a questão estética, a ideia de beleza muda. Desde as vanguardas modernas, a arte mudou bastante. De acordo com Umberto Eco no livro A Definição da Arte, o artista contemporâneo comporta-se como revolucionário: destrói completamente a ordem que lhe foi entregue e propõe outra. E trazendo uma história real, Claudio Borrelli conta, no filme Urubus, sobre o picho em São Paulo, bem como a errônea ideia de vandalismo e o contexto de violência com o qual essa arte é tratada.
Onde assistir ao filme Urubus?
A saber, o filme Urubus está em cartaz nos cinemas de todo o Brasil. Aliás, vai comprar algo na Amazon? Então apoie o ULTRAVERSO comprando pelo nosso link: https://amzn.to/3mj4gJa.
Trailer do filme Urubus
Urubus: elenco do filme
Gustavo Garcez
Bella Camero
Julio Martins
Ficha Técnica
Direção: Claudio Borrelli
Roteiro: Claudio Borrelli, Mercedes Gameiro, Cripta Djan e Vera Egito
Duração: 113 minutos
País: Brasil
Gênero: drama
Classificação: a definir