Crítica | Whitney (2018)

Bruno Cavalcante

Produzido em 2018 pelo cineasta e vencedor do Oscar Kevin MacDonald (‘The Black Sea’), e adicionado à plataforma da Netflix em janeiro de 2019, o documentário “Whitney”, mostra de maneira cirúrgica, tudo o que de fato aconteceu na vida de Whitney Houston, desde sua infância, até sua precoce e trágica morte em 11 de fevereiro de 2012.
Com uma abordagem pouco distinta em relação ao documentário “Whitney: Can I Be Me?” (2017), também disponível na Netflix, MacDonald decidiu apostar em uma narrativa talvez menos sensacionalista e mais factual, a partir de depoimentos de familiares, amigos, músicos e empresários, deixando para o espectador a responsabilidade de juntar o quebra-cabeças distorcido da vida da intérprete de “I Will Always Love You”.

Infância e família

Whitney Houston nasceu em 9 de agosto de 1963, em Newark, Nova Jersey, EUA. Apesar da recente vitória norte-americana contra o sistema de segregação racial, que só foi abolido entre os anos de 1950 e 1960, através do fim da ideia de “separados, mas iguais” pela suprema Corte, ainda existiam conflitos relacionados às péssimas políticas adotadas para os direitos civis dos negros estadunidenses. Já no início do documentário, MacDonald aponta uma entrevista em que Whitney relata se recordar dos conflitos e problemas nas ruas. No entanto, apesar de ser uma lembrança vívida em sua memória, Houston cresceu cercada por uma grande família, liderada a mão de ferro pela matriarca Cissy Houston, que de certa forma, superprotegia a filha caçula das demais interferências externas.

Cissy Houston e Whitney (foto: reprodução internet).

A personalidade forte de Cissy é mostrada de maneira clara logo no início do documentário. Não é preciso entender muito sobre sua trajetória para saber que, de alguma forma, a mesma ainda carrega um certo fardo pelo fim trágico de sua filha. Ao ser questionada sobre o relacionamento entre ela e Whitney, Cissy apenas relata que sempre esteve disposta a fazer o que fosse preciso para proteger sua cria. O que para os fãs ou espectadores de “Can I Be Me”, fosse como uma espécie de confissão pelos erros cometidos.
Cissy Houston, na época, era a chefe do departamento de música em sua igreja, e a mesma fazia questão de levar todos para lá, incluindo Gary (seu filho do 1º casamento), Michael e a própria Whitney. Entretanto, mesmo com a cortina de fumaça cristã que Cissy tentava impor a todos, sua família estava longe de ser perfeita.

A polêmica das drogas

Uma grande falácia que se criou ao redor de Whitney durante tantos anos através da mídia, foi a de que seu ex-marido, Bobby Brown, era quem a teria levado ao vício das drogas. Mas, ao assistir ao filme, descobrimos que não. Na verdade foi Michael Houston, seu próprio irmão, que a aproximou do crack e a cocaína, ainda nos anos 80.
Em entrevista à Oprah em 2013, Michael revelou que tudo havia se tornado meio que hábito comum entre irmãos, que também incluía Gary (informação presente no doc). “Nós fazíamos tudo juntos, então posso dizer que fui eu quem apresentou Whitney às drogas. Você tem que entender que na época… Eram os anos 1980… Isso era aceitável. Na indústria do entretenimento o acesso era fácil e não era uma coisa pejorativa como é hoje, nós apenas não sabíamos no que isso levaria”.

Gary, Cissy, Whitney, John e Michael Houston (foto: reprodução internet).

No decorrer do documentário o discurso de Michael torna-se algo ainda mais estarrecedor, após a afirmação, por diversas vezes, de que a quantidade de drogas utilizadas por ambos, era algo além do limite, capaz de trazer sérios danos à qualquer pessoa.

Identidade questionada

A partir de 1985, quando Whitney lançou seu primeiro disco, as coisas começaram a fluir e as oportunidades surgiam cada vez mais. Diversos number ones seguidos nas paradas da Billboard, prêmios e mais prêmios, vendas exorbitantes etc. Whitney era o novo nome da américa branca, porém nem tanto da comunidade negra.
Na edição de 1988 do Soul Train Awards, premiação que celebra a música negra norte-americana, o documentário mostra que Whitney chegou a ser vaiada enquanto sua canção popular era exibida em um vídeo de apresentação de uma categoria em que estava concorrendo. Aquela foi a primeira grande manifestação pública de que o nome Whitney Houston definitivamente não era unânime.
O doc de Kevin MacDonald traz um desabafo de Houston sobre este momento, com a cantora afetada por ter sido vaiada, não por alguém não gostar de seu canto, mas por acharem que ela não representava a música negra. Críticos do gênero apontavam que o som de Whitney era um “pop para agradar brancos”, sem muita conexão com a raiz da black music estadunidense. E, ao longo do documentário, compreendemos que isso acabou tomando proporções muito maiores em sua vida posteriormente.

Robyn e Bobby Brown

Neste mesmo evento, a audiência se mostrou completamente diferente ao recepcionar o astro do R&B em ascensão, Bobby Brown. O público o admirava. O ex-integrante do New Edition revela no documentário, que durante sua apresentação no palco do Soul Train, Whitney a todo momento fazia gestos para chamar sua atenção. A partir daí, temos o início do futuro romance entre os dois.

Bobby Brown e Whitney Houston em início de namoro (foto: reprodução internet).

A conclusão que temos é que, neste começo, Whitney estava inegavelmente encantada por Bobby Brown, principalmente nos momentos antes e logo após se casarem. E a ideia do romance entre os dois agradava não somente o marketing e o público, como também sua própria família, principalmente Cissy, que depois do surgimento de diversos relatos na mídia sobre a sexualidade de sua filha, mostrou-se bastante preocupada em acobertar as fofocas. Em outras palavras, concluímos que nada poderia interferir na carreira meteórica de Whitney Houston. Algo muito comum quando falamos de show business.
E as fofocas sobre Whitney tinham uma origem, todos os veículos falavam sobre sua relação próxima à Robyn Crawford, sua amiga de infância e assistente pessoal. Ao contrário de “Can I Be Me”, em que pudemos entender mais sobre a importância de Robyn na vida de Whitney, MacDonald preferiu não se aprofundar neste tema do mesmo modo, e deixou a influência da Crawford contada a partir de pontos de vistas diferentes.
Enquanto Gary Garland aparecia no documentário dizendo o pior de Robyn, outros amigos e familiares, inclusive a narrativa não intencional da produção, apontavam o contrário. Podemos dizer que o que é colocado de maneira explícita no filme, é que Robyn era a única que direcionava os assuntos de Whitney para primeiro plano, uma atitude que poderia incomodar muita gente ao redor. Todavia, em todos os audiovisuais documentados até então, percebemos que Houston tinha em Robyn uma confiança quase que inabalável.

Robyn Crawford e Whitney (foto: reprodução internet).

Crawford trabalhou com Whitney até pouco antes dos anos 2000, quando deixou a produção após diversos desentendimentos, inclusive físicos, com Bobby Brown. Em um certo momento do vídeo, podemos ver que a relação nos bastidores definitivamente não era das melhores. Após a saída de Robyn, quem passou a comandar a carreira de Whitney foi seu pai, John Houston. A partir de então, tudo começou a ir por água abaixo.

Carreira em declínio

Após uma década de sucesso, sendo lembrada como uma das maiores estrelas e vozes do mundo, Whitney começou a ser afetada diretamente pela mídia negativa. Já não era mais possível esconder os problemas com drogas, agressões no casamento e crises como o roubo de milhões de dólares de sua empresa, que no documentário descobrimos que o autor era seu próprio pai, John Houston.
E com o abuso das drogas, algo que se intensificou ainda mais por conta de seus problemas matrimoniais, e que no documentário entendemos como uma espécie de rechaço egóico por parte de Bobby Brown, a voz de Whitney também sofreu sérias avarias, ao ponto de quase não conseguirem terminar o álbum “Just Whitney” (2002).

Whitney e Bobby Brown em meados dos anos 2000 (foto: reprodução internet).

Este certamente foi um período negro na vida da cantora, com raras recordações íntimas até então, e o que saia para a mídia, não parecia ser nem a ponta do iceberg. As imagens da produção do disco surgem no documentário de Kevin MacDonald como parte do pacote de gravações bônus, jamais divulgadas pela família.
Joey Arbagey, produtor da Arista Records entre os anos 2000-2004, que acompanhou todo o processo do disco, revelou que os gastos eram exorbitantes entre locações, estadias, comida etc. E que Whitney parecia não muito compromissada em terminar o trabalho. No entanto, Arbagey chegou a apontar que mesmo com tantos problemas, a magia ainda acontecia e a voz de Houston ressurgia das cinzas de vez em quando – momento da gravação de “You Light Up My Life”- , ou seja, Whitney precisava de ajuda e foco para se reerguer.

Bobbi Kristina

Whitney” também não chega a focar tanto na relação de Houston com sua filha Bobbi Kristina, que veio a falecer em 2015, em condições parecidas com as de sua mãe. Os relatos que temos no documentário são apenas de familiares, que revelam a negligência por parte de Houston e Brown em relação à Bobbi. Talvez a intenção fosse não pesar muito por este lado.

Whitney e Bobbi Kristina na festa pré-Grammy 2011 (foto: reprodução internet).

Mas, apesar de não revelar tanto, entendemos que a menina tinha um certo rancor em sua vida, talvez não pela mãe – mesmo alegando querer matá-la –, mas por tudo o que havia presenciado durante tantos anos, o vício, as agressões físicas, verbais etc. A verdade é que não podemos culpá-la por nada, pois Bobbi foi a grande vítima desta trágica biografia. E como bem disseram no documentário: “ela sequer teve uma chance”.

Encontrando o caminho

Ainda no início dos anos 2000, tivemos a derradeira entrevista para Diane Sawyer em 2002. Ali, a gravadora chegou no ponto em que teve de admitir seus erros, pois encobrir já não estava mais funcionando, e Whitney precisava falar a verdade. Só que o resultado não saiu como o esperado e a mídia se tornou ainda mais negativa.
Uma grande falta neste documentário foi a ausência da fase de reclusão musical da cantora (2003-2008), período em que não tivemos nenhum disco lançado em 5 anos, nem mesmo o reality show “Being Bobby Brown” (2005) foi abordado. MacDonald apenas passou pelo divórcio do casal em 2007. Acredito que a fase “I Look to You” (2009) poderia ter sido apontada para que pudéssemos entender melhor o momento de sua redescoberta, principalmente após o retorno de Clive Davis, mentor e “criador” de Houston.

Whitney no American Music Awards 2009 (Foto: Kevork Djansezian/Getty Images).

Após tantos momentos bons e ruins, a conclusão que este documentário nos deixa é que Whitney acabou se tornando muito maior do que a sua própria dimensão consciente. Ao contemplar todo este material, é possível entender a baixa autoestima da cantora, que acabou deixando se levar por influências externas, muito além das que Cissy pudesse controlar no passado, e isso inclui até mesmo casos mais sérios como a alegação de abuso cometido por Dee Dee Warwick, sobrinha de Cissy.
Whitney precisava ser livre e ter a consciência disso, talvez o uso das drogas fosse uma espécie de escape deturpado para esses momentos, algo que ninguém pudesse ver, um instante em que ela pudesse se sentir liberta. Whitney precisava de ajuda, só que aparentemente não sabia como pedir, se apegava à sua fé como alguém que necessitasse desesperadamente de um ombro amigo. Talvez se aquela tour desastrosa de 2010 não tivesse acontecido, talvez se Robyn não tivesse partido, talvez. Mas, a única certeza que temos é que o seu legado ainda EXISTE.

“Eu não conhecia minha própria força
E eu me abati e desabei
Mas eu não desmoronei
Passei por toda dor
Eu não conhecia minha própria força
Sobrevivi ao meu tempo mais sombrio
Minha fé se manteve viva”

(I Didn’t Know My Own Strength – Diane Warren / W. Houston)

::: FICHA TÉCNICA

Título original: Whitney
Direção: Kevin MacDonald
Produção: Jonathan Chinn, Simon Chinn, Lisa Erspamer
Elenco: Whitney Houston, Ellen White, Michael Houston, Cissy Houston, Aretha Franklin, Gary Houston, Donna Houston, Kenneth Gibson, Deforest B. Soaries Jr., Drinkard Singers, Dionne Warwick, Dee Dee Warwick, Keith Kelly, John Houston III, Patricia Houston, Steven Gittelman, Bette Sussman, Rickey Minor, Clive Davis, Ellin Lavar, Robyn Crawford, Brad Johnson, Lynne Volkman, Martin Chase, Bobby Brown, Laurie Badami, Bobbi Kristina Brown, Marvin Gaye, Cinque Henderson, Kenneth ‘Babyface’ Edmonds, Nicole David, Kevin Costner, Nelson Mandela, Saddam Hussein, Mary Jones, Steve Lapuk, Joseph Arbagey, L.A. Reid, Ray Watson.
Distribuição: Miramax
Gênero: Documentário
Ano: 2018
Classificação: 14 anos

Bruno Cavalcante

Meu nome é Bruno Cavalcante, sou formado em publicidade e propaganda, carioca, escorpiano, apaixonado pela vida e por cinema também. Meu gênero preferido é o terror, mas gosto e vejo de tudo um pouco.
NAN