Argentina, 1985 crítica do filme 2022

Foto: Amazon Prime Video / Divulgação

‘Argentina, 1985’: a luta pela justiça em uma país pós ditadura militar

Ana Rita

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2 de novembro de 2022

Uma parte dos países do Cone Sul teve em suas histórias períodos de ditadura militar, como Brasil, Argentina, Chile e Uruguai. Muitas cicatrizes e traumas ficaram nessas populações, mesmo que alguns não reconheçam ou idolatrem os regimes ditatoriais e suas torturas.

Em um momento no qual a extrema-direita cresce, bem como seus partidos fascistas, relembrar as marcas desses regimes é fundamental. E é deste modo que Argentina, 1985, filme exibido no Festival do Rio e lançado recentemente no Amazon Prime Video, se estabelece em 2022. Baseado em fatos reais, o longa conta a história do importante julgamento que ocorreu na Argentina entre os anos de 1984 e 1985, em um período pós ditadura militar e da retomada da democracia dos nossos hermanos.

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Junta Militar

Antes, um breve resumo histórico sobre Argentina e a ditadura militar. O país sofreu por períodos ditatoriais, mas o mais duro e violento ocorreu na última ditadura, referente aos anos de 1976 a 1983, quando a presidente Maria Estela Martínez de Perón foi deposta. A Junta Militar era composta por três armas das Forças Armadas: o Exército, a Marinha e a Aeronáutica, que, com o golpe, colocou Rafael Videla no poder.

Foi um momento de forte represália e violência com a população civil. E, assim como no Brasil, houve abuso de poder extremo por parte dos militares (se é que é possível abusar mais de seus poderes do que a instauração de uma ditadura militar).

Pessoas foram mortas, torturadas e muitos ainda estão desaparecidos, algo bem semelhante ao Brasil. Acredita-se que mais de 30 mil pessoas foram mortas durante a última ditadura militar argentina.

Com o fim dessa ditadura e o período de retomada da democracia, muitos pediram por justiça e condenação dos militares. No Brasil, isso também ocorreu e ainda acontece, mas o ditado de que “a história cobra” não se aplica. Os militares nunca chegaram a ser condenados e ainda há quem peça pela volta do regime militar. Mas com nossos hermanos foi diferente. Entre 1984 e 1985, o tribunal de justiça argentino julgou, de forma histórica, os militares responsáveis pela barbárie que aconteceu.

O julgamento

A ferida em países que presenciam a ditadura nunca vai cicatrizar. Não se apaga a violação dos direitos humanos, bem como assassinatos e torturas. Mas a justiça a esses casos é um modo de respeito a quem sofreu. No filme Argentina, 1985, temos a reconstrução desse julgamento histórico, acompanhando como foco o advogado Julio Strassera (Ricardo Darín), que acusa os militares argentinos pelos crimes cometidos durante a ditadura.

O filme inicia na casa do jurista, quando ele e sua família estão reunidos na sala vendo o Ministro do Exterior na Argentina na TV culpando as vítimas do regime militar. A obra contrapõe a cena ao exibir a cobrança dos civis pelos desaparecidos durante esse período.

Julio até se mostra receoso, já que, de início, acredita que esse julgamento seja uma ideia ‘idealista’ ao se exigir que todos os ditadores sejam condenados e presos. Até porque é difícil acreditar em um processo de acusação dentro do governo contra algo que nem os governantes acreditam.

Tocando na ferida

Um ponto bastante interessante sobre Argentina, 1985, que podemos notar em outras filmes sobre esse período, é que eles ‘tocam na ferida’ do povo argentino, como afirma o crítico e historiador, Waldemar Dalenogare. Afinal, os nomes de militares argentinos são citados. Não há uma criação de ditadura como um ser único, e sim de um grupo de agressores violentos que não devem ser esquecidos, mas lembrados como vergonha e símbolos do fascismo que se estendeu na Argentina durante esse período.

Já durante as primeiras audiências, esses militares e sua defesa recriminam o julgamento. Eles defendem que sejam julgados pelo tribunal militar, uma vez que não reconhecem a legitimidade do outro tribunal (nisso já sabemos o porquê). Nem todos os regimes fascistas tiveram o fim como deviam. Nem todo fascista acabou como deveria. O fascismo não é apenas uma ‘ideologia’, é um modo de governar que deve e precisa ser combatido sempre.

Os testemunhos

Argentina, 1985 mostra o processo de construção de um dos julgamentos mais importantes da história do mundo; assim como retrata a investigação e o acúmulo de evidências contra os ditadores; e os desafios da promotoria de acusação nesse período recente de pós ditadura, na qual ainda se continuou o prestígio que se tinha com os militares.

Sem dúvidas, os momentos mais marcantes e emocionantes são as denúncias e testemunhos das pessoas torturadas durante o regime militar. E Santiago Mitre, com sua direção, dá o destaque importante e central da relevância desses testemunhos.

O companheiro de equipe de Julio, Moreno Ocampo (Peter Lanzani), chega a proferir que “as testemunhas são heroínas”. Elas são a chave do processo e a exposição mais direta desses abusos e torturas dos militares. Mulheres abusadas, estupradas, que tiveram filhos mortos ou roubados. Pessoas abusadas psicologicamente, cujas mortes foram usadas como ferramenta política.

Fica claro também que isso não partiu somente dos militares. Houve (e há) muitos cúmplices, pessoas que ajudaram nesse processo, assim como apoiaram, como denunciam médicos que estavam presentes e foram ativos nessas torturas.

Medo e ameaças

A equipe de Julio Strassera parte para uma importante investigação a fim de provar a ligação desses ditadores com as torturas e o sequestro dos desaparecidos. O país é percorrido, depoimentos são recolhidos de pessoas que foram torturadas e sobreviveram. Claro que, nesse momento, recebem ameaças dos militares (parece até que a ditadura não havia acabado).

Mesmo nessa retomada da democracia, o filme consegue transpassar a sensação de medo e perseguição, herança deixada pela Junta Militar. Tanto pela acepção de expressão dos atores que acusam os militares, quanto pelos tons mais sóbrios e frios escolhidos pelo diretor. Há um constante medo das consequências do andamento desse processo, assim como do seu resultado. Julio e sua família passam a ter segurança direta e a todo momento.

Fascismo continua

Mesmo que de forma cômica, Argentina, 1985 também nos mostra que esse fascismo pós ditadura não se encerra com o fim do regime militar, uma vez que pessoas que poderiam ajudar, que fazem parte da ‘justiça’, são fascistas. Em uma conversa com Ruso (Norman Briski), velho amigo de Julio, para montar sua equipe, eles citam os nomes enquanto os mesmos são descartados ao saberem, lembrarem ou constatarem que são fascistas, que apoiaram ou apoiam a Junta Militar.

Nesses momentos de ameaças, a direção do filme atinge um bom e coerente ritmo, até semelhante ao de filmes de guerra que abordam estratégias. E esse é, de fato, um filme sobre uma batalha de uma grande guerra contra os ditadores militares. Existe um medo da volta da ditadura, ainda mais quando se sabe que a Argentina passou por vários regimes ditatoriais no século 20.

Conservadorismo

Como todo regime fascista, o conservadorismo é forte, e isso é advogado. Principalmente essa ideia da idolatria com pessoas mais velhas, colocando os jovens como sempre incompetentes e despreparados. Isso se torna uma influência no momento que Julio descobre que seu companheiro em julgamento é Moreno Ocampo, um jovem advogado que compôs sua equipe apenas por jovens advogados que lutaram pela justiça desse regime.

Esses valores conservadores são bem desenvolvidos quando Moreno conta que sua mãe apoiou os militares, que não acreditava nas acusações, já que o ditador Rafael Videla ia na mesma missa que ela. A ideia de que ‘pessoas religiosas são do bem’ de forma obrigatória, que os valores cristãos foram estabelecidos, é algo que podemos facilmente trazer para o Brasil (principalmente agora em 2022). Quando a mãe de Ocampo liga após saber o testemunho de uma mulher grávida, que sofreu tortura pelos militares, é esse ponto de virada e que acende uma esperança de justiça contra os ditadores, mesmo com o conservadorismo e esse extremo respeito ao exército.

A importância do julgamento

Argentina, 1985 é um filme importante para dos dias de hoje. Traz uma história de justiça e esperança desses tempos de ódio, violência e opressão. É um importante capítulo na história da Argentina. Mas é importante dizer (e o longa também fala isso) que a justiça não foi estabelecida como devia. Alguns militares não foram condenados e outros tiveram penas curtas (mesmo Videla tenha sido condenado à prisão perpétua). Além disso, muitos continuaram e continuam desaparecidos.

Aproveito para indicar um dos filmes mais importantes da Argentina, e que complementa essas denúncias contra o regime militar. Trata-se de “A História Oficial” (1985), de Luis Puenzo, que conta uma parte da história do movimento das mães que protestam pelos filhos desaparecidos e as crianças roubadas durante o abuso dos militares. A produção é emocionante e está disponível na Netflix.

Analisando de forma jurídica, Argentina, 1985 traz a importância da separação dos poderes, uma vez que assim se estabelece a garantia da justiça e um bom funcionamento das instituições.

Espetacularização

É óbvio que, como todo filme que se baseia em uma história real, que documenta um marco histórico, existe uma espetacularização sobre o acontecimento, com construção de personagens heroicos. Mas dentro de uma análise contextual, isso é necessário para definir os lados das história e enfraquecer o discurso opressor e de ódio da extrema-direita.

Complementando, é impossível não olhar de forma emocionante para a equipe de condenação da Junta Militar. Por ser um momento tão importante para a Argentina, um julgamento que funcionou como sinônimo de justiça pelos crimes cometidos por fascistas, pelo sadismo que esses militares tiveram.

Como brasileira, mesmo que não tenha vivido a Ditadura Militar, sei que um julgamento desses no Brasil traria um pouco de paz e esperança para as famílias destruídas, assim como para as pessoas abusadas e torturadas durante o Regime Militar.

“O julgamento das juntas foi o primeiro na história onde um tribunal civil condenou uma ditadura militar”.

*Filme visto no Festival do Rio 2022

Onde assistir ao filme Argentina, 1985?

A saber, Argentina, 1985 foi exibido no Festival do Rio 2022 e está disponível para assistir no catálogo do Amazon Prime Video.

Trailer do filme Argentina, 1985

Argentina, 1985: elenco do filme

 Ricardo Darín

Peter Lanzani

Alejandra Flechner

Ficha Técnica do filme Argentina, 1985

Título original do filme: Argentina, 1985

Direção: Santiago Mitre

Roteiro: Santiago Mitre

Duração: 141 minutos

País: Argentina, Estados Unidos, Reino Unido

Gênero: drama

Ano: 2022

Classificação: 14 anos

Ana Rita

Piauiense, nordestina e estudante de Arquitetura, querendo ser cinéfila, metida a crítica e apaixonada por cinema, séries, arte e música. Siga @trucagem no Instagram!
4.5

Créditos Galáticos: 4.5

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