‘Amor Estranho Amor’ (1982) é um filme vigoroso

Bruno Giacobbo

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22 de fevereiro de 2019

O poder da ignorância. Durante anos, eu ouvi o tão propalado discurso de que uma Xuxa, ainda desconhecida e novinha, participara de um filme pornô e fizera sexo com um menino imberbe. Durante este tempo todo, esta retórica foi alimentada pela própria apresentadora. Graças à sua sanha desenfreada em apagar qualquer vestígio de que um dia esta obra existira. Vergonha? Arrependimento? Não sei bem.

A questão, parece, é que ela sempre julgou ter uma imagem a zelar. Afinal, era a de ‘Rainha dos Baixinhos’. Contudo, nesta história toda, quais são os fatos verdadeiros? O que é realidade e o que é lenda? O fato verídico é que, em 1982, ela contracenou, sim, com o garoto Marcelo Ribeiro. A lenda é que, acreditem, não há nada de vergonhoso ou desonroso no conteúdo deste longa-metragem. Muito pelo contrário.

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A trama

Dirigido e roteirizado por Walter Hugo Khouri, Amor Estranho Amor começa com Hugo (Walter Forster), um senhor de uns 70 anos, chegando a um velho casarão da elite paulistana. Uma vez dentro, vagando pelos cômodos, seus pensamentos voam no tempo e retornam ao distante mês de novembro de 1937, para um Brasil prestes a mergulhar na ditadura do Estado Novo.

Juntos, somos transportados e o observamos, criança (Marcelo Ribeiro), chegando ao mesmíssimo lugar. No entanto, conduzido pelas mãos da avó. Até aí, nada demais. Acontece que na tal residência funcionava um bordel de luxo gerenciado por Laura (Íris Buzzi). Lá, a mãe de Hugo, Anna (Vera Fischer), era a principal garota de programa. A preferida do doutor Osmar (Tarcísio Meira), o todo poderoso Governador de São Paulo.

Outra recém-chegada é Tamara (Xuxa). Uma lindíssima jovem do interior de Santa Catarina que está ali para seguir os passos de Anna, assim como de todas as mulheres que um dia cruzaram os portões daquele casarão. Além disso, ela também está sendo preparada para ser dada como “presente” ao doutor Benício (Mauro Mendonça), o Governador de Minas Gerais. É óbvio – e nem poderia ser diferente – que, naquele ambiente de luxúria, Tamara e as demais meninas acabariam fascinando o jovem e povoando seus sonhos outrora inocentes.

Sexo e erotismo naturais

Cineasta-autor, salvo algum engano de minha parte, Walter Hugo Khouri roteirizou todos os longas-metragens que dirigiu. E olha que estes não foram poucos. A saber, foram 26 ao todo, para ser preciso.

amor estranho amor xuxa

Contemporâneo do Cinema Novo, ele não pode ser incluído neste grupo. Isso porque, enquanto Gláuber Rocha e sua turma tinham preocupações pontuais com aspectos sociais e a dura realidade de um país já vivendo a longa noite da ditadura militar de 64, o diretor paulistano escolheu realizar um cinema urbano. Quase sempre passado em São Paulo e com protagonistas oriundos das classes mais abastadas. Nem por isto seus trabalhos eram, vamos escrever assim, desprovidos de conteúdo, como tentaram fazer crer alguns detratores.

Por ter estudado filosofia e nutrir grande interesse pela psicanálise, Khouri dotou todos os seus personagens principais de ambiguidades latentes. Aos olhos do público, longe de parecerem seres unidimensionais, eles são pessoas absolutamente comuns, com dúvidas, bem como contradições e defeitos visíveis.

Dentro deste arquétipo, era mais do que natural que o sexo e o erotismo fossem elementos importantíssimos na formação de suas personas. Assim, onde alguns enxergam o ato sexual como um mero chamariz para levar os espectadores aos cinemas, devemos enxergar muito mais.

Sem vulgaridade

O sexo é uma arma para chegar ao poder em Amor Estranho Amor. Como qualquer político de alto coturno, Osmar sabe que o sexo e o poder formam uma dobradinha inseparável. Assim, com eleições presidenciais marcadas para o ano seguinte, ele almeja o cargo de supremo mandatário do Brasil. Só que, para isso, precisa do apoio de Benício. Revivendo, assim, a velha política do “café com leite” que ditou os rumos da república em seu início.

Então, após três dias de intensas rodadas de negociações e articulações, ele diz para Anna que proporcionar uma inesquecível noite de amor para o seu aliado será a maneira mais eficaz de garantir a solidez da futura união visando o pleito. As palavras não foram estas, mas o sentido sim.

Assim como quase todos as películas de Khouri, este exemplar possui sexo e nudez. De fato, eles podem, às vezes, soar gratuitos. Entretanto, não há vulgaridade. Aliás, quase no começo do filme, Tarcísio Meira e Vera Fischer realizam aquela que talvez seja a mais bela cena de amor do cinema brasileiro. Ao som de uma música cuidadosamente escolhida pelo maestro Rogério Duprat, fiel colaborador do diretor. Este momento é coroado por um choro copioso de Hugo que, em silêncio, viu tudo. Ainda sem entender seu significado real.

Estranho amor, mas belo

Já a tão propalada primeira noite do menino realmente ocorre. Agora, será que ele e a Xuxa de fato consumam o ato? Bem, eu vou me reservar ao direito de não revelar. Vejam o longa e tirem suas próprias conclusões. Se existe alguma coisa aqui que poderia gerar polêmica, esta é uma cena envolvendo mãe e filho com fortes questões edipianas. Aliás, estas são recorrentes na obra do cineasta.

Seja pelos aspectos já citados, ou pela exímia direção de Khouri, que sobrepõe os olhares do velho e do novo Hugo e nos faz partícipe desta comunhão; ou ainda pela trilha sonora de Duprat, que remete os espectadores instantaneamente à década de 30; Amor Estranho Amor é um longa-metragem vigoroso. Certamente uma obra-prima do cinema nacional que, às custas da ignorância alheia, foi difamado e completamente esquecido. Uma pena!

Em tempo: na época de seu lançamento, o filme rendeu o prêmio de melhor atriz para Vera Fischer, no Festival de Cinema de Brasília. Um sinal de que muita gente o recebeu sem preconceito.

Enfim, desliguem seus celulares e excepcional diversão.

TRAILER DE ‘AMOR ESTRANHO AMOR’

FICHA TÉCNICA

Título original: Amor Estranho Amor
Direção: Walter Hugo Khouri
Elenco: Marcelo Ribeiro, Walter Forster, Xuxa, Tarcísio Meira e Vera Fischer
Distribuição: Embrafilme
Onde assistir ‘Amor Estranho Amor’: Canal Brasil, sexta-feira (12), às 00h30
Data em que estreou: 01/11/82
País: Brasil
Gênero: drama
Ano de produção: 1982
Duração: 97 minutos
Classificação: 18 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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