RESENHA | ‘Meia-noite em Bhopal’ é uma obra excelente e sua leitura é fundamental embora seja bastante dolorosa

Aline Khouri

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21 de junho de 2016

Padmini era uma jovem de oito anos, uma ‘’menina delicada de longos cabelos pretos presos em uma trança dupla” e a mais velha de dois irmãos: Ashu, de sete anos, e Sunil, de seis anos, todos filhos de Ratna e Sheela Radar, de quem a menina herdou os olhos amendoados. Os Nadar eram apenas uma entre inúmeras famílias paupérrimas da Índia e precisavam lutar para sobreviver: nessa batalha até mesmo os meninos menores trabalhavam em busca de mais algumas rúpias para ajudar no sustento da família.

A família morava em Mudilapa, uma das 500 mil aldeias da Índia, como também uma das mais miseráveis. Assim como milhões de crianças do país, Padmini e seus irmãos não tiveram acesso à educação escolar e tiveram que assumir responsabilidades adultas desde muito cedo para que tivessem o que comer. Na Índia, era comum que fábricas de fósforos e cigarros explorassem a mão de obra infantil devido à habilidade dos pequenos dedos das crianças e quando surgiam trabalhos semelhantes, os Nadar enxergavam ali oportunidades.

Logo, Padmini e seus irmãos estavam entre as crianças exploradas por uma dessas fábricas recém-aberta na época e que procurava novos “trabalhadores”. As condições de trabalho eram péssimas, as crianças muito pressionadas e em meio a situações extremamente perigosas.

É dessa maneira que se inicia Meia-noite em Bhopal, livro escrito por Dominique Lapierre e Javier Moro. Padmini, Ashu, Sunil, Ratna e Sheela são apenas alguns entre inúmeros personagens mostrados pela obra. Infelizmente, um dos grandes problemas desse livro é justamente esse: os Nadar e diversos outros nomes citados não são personagens, mas pessoas reais que tiveram suas vidas destruídas pelo maior desastre químico de que se tem conhecimento e que ocorreu na madrugada, mais precisamente à meia-noite e cinco, de três de dezembro de 1984.

Homens carregam crianças que ficaram cegas devido ao vazamento de gás.

Homens carregam crianças que ficaram cegas devido ao vazamento de gás.Foto: AP/Sondeep Shankar

Nessa data, 42 toneladas de isocianato de metila (MIC) ,um gás altamente tóxico, vazaram de uma fábrica de pesticidas da multinacional norte-americana Union Carbide e apenas naquele dia morreram cerca de três mil pessoas.

A contaminação provocada pelo acidente industrial provocou muitas outras mortes posteriormente e embora haja divergências sobre o número de falecimentos – algumas estimativas apontam até 30 mil mortos – existe uma certeza e é a de que essa tragédia foi resultado de erros e de negligências gravíssimos que poderiam ter sido evitados.

Na segunda metade do século XX, a Union Carbide era uma notória potência industrial e possuía 130 filiais em 40 países. Na época, a multinacional visava fabricar um produto eficaz para eliminar parasitas: o Sevin. Quando a Carbide decidiu abrir uma fábrica na região de Bhopal, capital do estado de Madhya Pradesh, a população indiana recebeu a notícia com grande entusiasmo e esperança de que suas vidas iriam ser muito beneficiadas.

A fábrica era vista como sinônimo de um gigantesco progresso tanto no combate aos parasitas que tanto prejudicavam as plantações locais e também uma oportunidade para os indianos revolucionarem e reconstruírem suas vidas, já que inúmeros trabalhos que estariam disponíveis para as comunidades paupérrimas das favelas que ficavam ao redor.

Painel com fotografias de alguns dos milhares de mortos. AP Photo/Prakash Hatvalne

Painel com fotografias de alguns dos milhares de mortos. AP Photo/Prakash Hatvalne

Desde o início, a Carbide estava ciente de que o isocianato de metila, o MIC, usado na fabricação do Sevin era extremamente tóxico. Um capítulo enumerava os potenciais efeitos gerados pela sua inalação acidental: inicialmente ocorriam severas dores no peito, depois asfixia e finalmente surgimento de edemas pulmonares com risco de morte.

Mesmo assim, ocorreram inúmeros erros na administração dos químicos e no gerenciamento da fábrica cuja maior preocupação era obter lucros cada vez maiores. Antes do acidente, engenheiros já tinham advertido a fábrica sobre essas falhas de segurança. Além disso, houve a morte de um funcionário e até pequenos vazamentos que apontavam os problemas da instalação.

Até mesmo um jornalista, chamado Rajkumar Keswani escreveu matérias sobre o perigo representado pela Carbide em tentativas desesperadas de alertar a população. Ele também escreveu duas longas cartas, uma dirigida à mais alta autoridade do estado, Arjun Singh, e a outra destinada ao presidente da Suprema Corte para reivindicar o fechamento da fábrica. Infelizmente, todos os alertas de Keswani também foram ignorados.

Meia-noite em Bhopal é narrado de forma delicada e envolvente. Além da tragédia em si, os autores se preocuparam em apresentar vários aspectos da sociedade indiana e há uma enorme variedade de personagens, desde os moradores que possuíam condições de vida miseráveis nas favelas próximas à fábrica até os altos executivos da Carbide.

Embora os autores constantemente relembrem o papel dos personagens, o número elevado de nomes que circulam pelo livro pode confundir a leitura algumas vezes. É válido observar que o acidente industrial e algumas de suas repercussões – os efeitos gerados pelo vazamento de gás incluem câncer, cegueira, paralisia, deformações, problemas nos órgãos reprodutores femininos, entre outros – só acontecem no final do livro e de uma forma um tanto repentina, talvez uma tentativa dos autores de ilustrar na ficção o incidente que ocorreu de maneira abrupta e destruiu milhares de vidas. Ainda assim, mais espaço poderia ter sido dedicado ao episódio.

No final do livro, existe um epílogo, que revela como os responsáveis pela tragédia continuam impunes, e uma seção que conta o destino de alguns personagens. Porém, na edição brasileira, justamente a personagem Padmini , quando adulta, e seu marido Dilip estão ausentes dessa seção e essas informações fazem falta ao leitor.

Ainda assim, esta é uma obra excelente e sua leitura é fundamental embora seja bastante dolorosa.

Ficha técnica

Título: Meia-noite em Bhopal
Autores: Dominique Lapierre e Javier Moro
Editora: Planeta
Tradução: Sandra Dolinsky
Ano: 2014
Especificações: Brochura, 360 páginas

Aline Khouri

Jornalista, com especialização em Cultura. Adora ler e escrever sobre pessoas e assuntos culturais, especialmente Literatura, Cinema e Teatro.
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