RESENHA | ‘O Engenhoso Fidalgo Dom Quixote de La Mancha’ de Miguel de Cervantes

Natalia Gulias

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29 de outubro de 2017

A obra mais aclamada de Miguel de Cervantes é iniciada por um prólogo que leva o leitor às etapas do processo de criação do autor. Com uma linguagem rebuscada e pouco acessível, sua fala é clareada com a explicação da doutora em letras pela USP Célia Navarro Flores. O prólogo do autor requer paciência para que o leitor se adeque aos estilismos de época utilizados por Cervantes e trás além de um “city-tour” da obra, um manual explicativo do próprio prólogo, convidando os leitores – com toda a sua metalinguagem – a fazerem parte desse processo e se aproximarem do caveleiro Don Quixote.

“Que tu, leitor caríssimo, me perdoes ou desculpes as faltas que encontrares neste meu filho.”

Cervantes alfineta diretamente os autores que ostentam conhecimento erudito em suas obras e avisa: tal mecanismo não será usado no livro que se segue, direciona-se na posição oposta e contraria a regra do clássico epopeico de se fazer histórias de heroísmo. Cervantes deixa bem claro: esta não é uma obra como as outras. Não encontrará citações de Platão, Aristóteles ou a própria Bíblia, como era de costume na época.

“E, com isto, Deus te dê saúde, e não se esqueça de mim.”

O princípio de sua introdução traz Alonso Quijano, o fidalgo de vida pouco ocupada a qual preenche com histórias de cavalaria, às quais tem muito gosto e afeição e que o fizeram se esquecer do exercício da caça. O fidalgo punha-se a desvendar o que estava por trás de trechos dos romances até que perdesse o juízo.

“Louvava no autor aquele acabar o seu livro com a promessa daquela inacabável aventura, e muitas vezes lhe veio o desejo de pegar na pena e finalizar ele a coisa ao pé da letra.”

A leitura o embarca num imaginário intenso que o leva a fazer de si próprio cavaleiro andante em busca de aventuras e do exercício de tudo que leu, ignorando os perigos e agravos que estavam presentes nas histórias. Sonhava, então, com a fama e reconhecimento do reino. Prontificou-se a consertar as armas enferrujadas de seus bisavós, dando a si próprio o pseudônimo de Dom Quixote de la Mancha e decide buscar alguém para se enamorar, chamando a lavradora Aldonça Lourenço de Dulcineia del Toboso e homenageando sua viagem em nome dela.

Com uma armadura improvisada, com as armas antigas de sua família e sendo não tão desejado pelas donzela, pôs-se a começar sua viagem. Dom Quixote irreverentemente encrenca-se com cavaleiros que zombam do nome da Dulcinéia, é resgatado e acolhido pelo padre local. Com isso, o padre explica que seu patrão é louco por causa de seus livros que Dom Quixote possui. A partir disso consegue armas melhores e, advertido por quem as forneceu a ele, buscou um escudeiro de sua vizinhança o qual servia para o ofício. Sancho Pança fica. então, a cargo deste posto.

“Cale a boca, amigo Sancho – respondeu Dom Quixote –; as coisas da guerra são de todas as mais sujeitas a contínuas mudanças.”

A história da briga de Dom Quixote se espalha assim como sua fama e outras histórias engraçadas se sucedem após esta primeira. O livro é humorístico e o herói da narrativa é irreverente, apesar da linguagem difícil. Cervantes chega a ser mencionado por vezes, como no capítulo no qual há uma brincadeira em relação aos livros de Dom Quixote por parte do padre. Além disso, alguns elementos da vida do autor estão presentes da história. Criando um perfeito herói que honraria sua bandeira, sua dama e sua igreja, Cervantes não deixa de homenagear o catolicismo ao longo de sua obra. Seu livro é dividido em partes, na qual a primeira introduz um pacato valente e sua progressão para se tornar Dom Quixote, com armas elegantemente mortíferas.

A partir desse momento, o próprio autor é posto à prova ao se ver no impasse de qual seria o passo certo a se tomar a seguir com a personagem criada por ele. O mesmo põe a culpa das ações seguintes no próprio cavaleiro, como se sob ele não recaísse responsabilidade algum quanto ao rumo da história.

“Causou-me isso grande pena, porque o gosto de ter lido aquele pouco se me devolvia em desgosto, pensando no mau caminho que se oferecia para se achar o muito que meu entender faltava ainda a tão saboroso conto.”

O autor quebrador de regras da época e que se recusou vendar os próprios olhos constrói uma narrativa com muito a se entender por traz de suas ironias muito bem construídas. Com um panorama magnífico do contexto histórico da época em que se passa a obra e, consequentemente, sobre os valores morais que circundavam a sociedade analogamente, pode-se ver a necessidade urgente de se fazer aparecer um novo e reconstruído herói, fora dos padrões e que diz tanto sobre na atualidade apesar de viver uma realidade completamente distante.

A obra é altamente recomendada para fugir da nossa realidade e buscar refúgio em uma estranhamente parecida, ao lado de cavaleiros, humor e uma busca enorme por aceitação social e reconhecimento da coroa. Esse conceito vem sendo revivido de épocas em épocas, como por filósofos e sociólogos que chegaram a discussões sobre as vitrines francesas e suas representações sociais por se sustentarem a partir de uma “falsa felicidade” em busca da aprovação de terceiros, e alcançou até uma das séries de televisão mais aclamadas da atualidade – Black Mirror, e seu famoso episódio “Queda Livre”, no qual a personagem principal é obcecada pelos likes de um aplicativo de celular por afetarem a sua vida como um todo.

“– Dom Quixote de la Mancha – respondeu Sancho –; é cavaleiro de aventuras, e dos melhores e mais fortes que de longo tempo para cá se têm visto neste mundo.”

A maior missão que traz é defender a pátria, mesmo com todas as aventuras que ele e Sancho Pança se põem a perseguir, ele almeja defender sua bandeira. A loucura de Dom Quixote é quase dada como óbvia após sua primeira queda do moinho.

Dom Quixote contesta Sancho em relação ao tamanho do moinho, dizendo que são, na verdade, gigantes e se atira em um deles para combate-los, sofrendo da queda logo após, porém dedicando-a a sua amada Dulcinéia. Dessa forma, a visão do cavaleiro da história é posta em julgamento, pois o mesmo parece misturar a realidade com suas fantasias e ilusões. Nos capítulos seguintes pode-se ver sua luta contra os rebanhos de ovelhas e sua loucura cada vez mais constante.

Entende-se, então, o porquê de o padre no começo do livro dizer que os romances de cavalaria seriam a causa da loucura de seu patrão, o próprio Dom Quixote que se perde em seu mundo ilusório após perder sua riqueza e já estando endividado em uma idade avançada, a partir disso busca uma mudança e torna-se cavaleiro de aventuras. Isso explica a queima dos livros por qual ele era profundamente obcecado.

As surpresas que Dom Quixote nos traz durante a leitura são enigmáticas e inimagináveis, a leitura por si torna-se cada vez mais agradável a cada página e é interessante mergulhar no universo eternizado por Miguel de Cervantes e, até, encontrar-se falando de modo semelhante às personalidades que ele apresenta aos seus “desocupados leitores”.

“Como as coisas humanas não são eternas e vão sempre em declinação desde o princípio até ao seu último fim, especialmente a vida dos homens; e como a de Dom Quixote não tivesse privilégio do céu […] veio-lhe uma febre que o teve seis dias de cama.”

Muito além de ser apenas um romance de cavalaria, Dom Quixote é um retrato social. Muito semelhante à obra “O Alienista” de Machado de Assis, porém pelo ângulo do paciente mal compreendido e dominado pela sociedade. O mau que ele faz a si mesmo e a forma como as pessoas a sua volta lidam com isso demonstram o quanto ele estava perdido em seus sonhos e não pode enxergar o quanto se desgastou. Como durante o resto da leitura, traçam-se muitos paralelos com a sociedade atual, que negligencia doenças mentais e prioriza o status em detrimento da felicidade. Dom Quixote foi reprimido, mas foi, também, feliz em suas ilusões e, até em seu leito, foi proclamado louco.

“Aqui jaz quem teve a sorte

de ser tão valente e forte,

que seu cantor alegrou

que a Morte não triunfou

da sua vida co’’a sua morte.

Foi grande a sua bravura

teve todo mundo em pouco

e na final conjuntura

morreu: vejam que ventura

com siso vivendo louco!”

Dom Quixote pode ter sido o modelo para diversos filmes em que o “mocinho” não é tão convencional, mas ainda assim conquista seu público. Entre filmes indies ou reproduções de contos de fada, procure uma personagem sonhadora e valente, talvez haja um pouco de engenhoso fidalgo nela.

Natalia Gulias

Uma vestibulanda de medicina de 17 anos usa seu curto tempo livre para ler bastante e descansar da pesada rotina de estudante.
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