BAÚ DO BLAH! | ‘O Poderoso Chefão III’ (1990)

Bruno Giacobbo

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12 de abril de 2019

Pode uma única e desastrosa atuação comprometer todo um longa-metragem? Pode, se esta for do protagonista. Existem filmes que são totalmente calcados na figura de seu intérprete principal. Peguemos o exemplo de Blue Jasmine (2013), de Woody Allen. Quase toda a sua força passa pela maravilhosa Cate Blanchett. Se ela tivesse falhado ou fosse outra atriz no seu lugar, provavelmente, não teria sido uma obra tão boa. Este breve preâmbulo serve para embasar o que vou dizer agora: desmerecer O Poderoso Chefão III (The Godfather: Part III) apenas por causa de Sophia Coppola, que interpreta Mary Corleone, filha de Michael (Al Pacino) e Kay (Diane Keaton) é uma covardia e a prova de que talvez alguns críticos não entendam nada de cinema. Sim, a filha do diretor tem um desempenho péssimo e funciona como uma espécie de âncora, fazendo com que seus colegas, especialmente Andy Garcia, precisem se esforçar em dobro. Só que a trama não gira em torno dela e mesmo a cena de sua morte possui uma apelo que igualmente independe da moçoila.

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Se vocês estão acompanhando este escriba até aqui – ainda dá tempo de ler os dois primeiros textos desta trilogia crítica, “O Poderoso Chefão” e “O Poderoso Chefão II” – e viram os filmes, sabem que Michael Corleone já não tem mais ao seu lado aliados do naipe de Peter Clemenza (Richard S. Castellano), Tom Hagen (Robert Duvall) e Rocco Lampone (Tom Rosqui). Um a um, nos longas ou em seus interstícios, eles foram morrendo. O ano é 1979 e o Don não tem também parte de sua própria família consanguínea. Kay abandonou o lar e vive com outro homem. Os filhos estão um pouco afastados. Anthony (Franc D’Ambrósio) quer ser cantor de ópera em vez de ser advogado, como sonha o pai. Ele sabe que este mandou matar o tio Freddo, revela a mãe. Mary é a presidente da Fundação Vito Corleone. Só que, lá pelas tantas, alguém afirma que ela não passa de uma simples testa de ferro. No comando de seu império, agora, quase todo legalizado, Michael tem dois braços direitos: o fidelíssimo enforcer, Al Neri (Richard Bright) e a devotada irmã, Connie (Talia Shire). Este é o núcleo duro do boss que, em breve, ganhará um terceiro membro: Vicenzo Mancini (Andy Garcia).

Vocês se recordam que no filme um, durante o casamento da irmã, Sonny Corleone (James Caan) traiu a esposa com uma das damas de honra? Então, aquela pimpona e fogosa dona era Lucy Mancini (Jeannie Linero) e Vincenzo fruto desta traição. É óbvio o carinho de Connie por ele e o fato de que o rapaz ainda não é formalmente reconhecido como um Corleone. Este reconhecimento ocorre com o desenrolar da película, à medida que Vincent (como também é chamado) prova que, apesar da impressão inicial, é mais parecido com o tio do que com o próprio pai. Em um dos melhores momentos de toda a trilogia, quando um helicóptero metralha o saguão de um hotel, em Atlantic City, onde a nata da Cosa Nostra americana está reunida, o jovem demonstra presença de espírito e, junto com Al Neri, salva a vida de Michael. O ataque ordenado por Joey Zasa (Joe Mantegna), o personagem de um magoado caporegime da família inspirado no verídico John Gotti, funciona como batismo de sangue para o futuro Don Vincenzo Corleone. E, reparem, o sangue abunda nesta tomada.

Se aproximar de Vincenzo, ter Connie próxima depois de tudo que eles passaram – no final do primeiro longa, ela o acusa, na frente de todos, inclusive de Kay, de ter mandado matar seu marido; já no segundo, ela é, de início, uma mulher frívola que não dá a mínima para os filhos – é uma forma de Michael se reconectar com seu sangue. E a entrada do sobrinho nesta dinâmica vai aproximá-lo ainda mais da filha, não, claro, sem isto acarretar vários problemas. O jovem Mancini-Corleone ambiciona uma posição no topo da hierarquia familiar. Sabe que Zasa, um dos antagonistas desta trama derradeira, não é de confiança e pela costas denigre a imagem do Don. Entretanto, quando reencontra a prima, que não via desde a infância, há uma espécie de magia e os dois se apaixonam. Em outros tempos, isto não seria um empecilho, mas Michael sabe o que é perder um amor, Apolônia (Simonetta Stefanelli), vitimado por seus inimigos. Assim, ele impõe uma escolha ao Romeu: o império ou a princesa?

Sem ser a protagonista, Mary é uma personagem importante. Ela costura esta ligação entre o imperador e o cavaleiro que quer ser rei, gerando tensão em cada tomada que os envolve, mas não é a principal figura feminina desta história. Este posto foi reservado para Connie, vivida em um verdadeiro tour de force por Talia Shire. Muito se fala da transformação pela qual passa Michael. Acontece que esta ocorre por inteira no primeiro capítulo da trilogia. Nele, assistimos ao dublê de militar e universitário se metamorfosear em um calculista chefe mafioso. De forma crível, sem dúvida, porém rápida. A metamorfose de Constanza “Connie” Corleone leva três filmes quase completos. De mulher indefesa, que apanha do esposo, à versão moderna de Lucrécia Borgia, passando pela dondoca frívola, a atriz, que é irmã do diretor, dá uma aula de atuação. Centrados nas figuras masculinas, os longas iniciais relegam as mulheres a papéis secundários. Aqui, não. Elas estão no centro do drama, da ação e são igualmente capazes, como escrevi lá no texto um, de lutar para não serem excluídas do “Destino Manifesto”. Talia Shire é, para mim, assim como Andy Garcia, tão protagonista quanto Al Pacino e deveria ter bisado a indicação ao Oscar, pois está melhor do que em 1974. E, por favor, jamais comam o cannoli ofertado por uma mafiosa vingativa.

Eu gostaria de falar sobre um personagem que adoro e que, apesar de ter ganho muito espaço a partir do longa dois, não tem a sua origem explicada: Al Neri. Quem leu o livro de Mario Puzo e as duas continuações oficiais, “A Volta do Poderoso Chefão” e “A Vingança do Poderoso Chefão”, do escritor Mark Winegardner, conhece toda a sua trajetória. Neri é um ex-policial que foi preso por espancar um traficante de drogas e cafetão com a lanterna que usava em suas rondas. Um vez na prisão, é abandonado pela esposa, mas ele não se conforma. É aí que seu sogro procura os Corleones pedindo que estes utilizem seus contatos no judiciário para soltá-lo, desde que Al desista de tentar voltar para a mulher. Tom Hagen aconselha Michael a ajudar, pois vislumbra a oportunidade de criar um novo Luca Brasi. O arranjo é feito e, uma vez livre, Al Neri dedica sua vida ao Don. Sua fidelidade não tem preço e sua incorruptibilidade é a mesma dos tempos que usava a farda azul da NYPD. Entendo que uma adaptação é feita de escolhas, mas, de novo, como fã me concedo o direito de sentir falta de algumas coisas. Leiam os livros e entenderão por que gosto dele.

Voltando. Ter escrito um roteiro original possibilitou a dupla Francis Ford Coppola e Mario Puzo criar ainda mais livremente. E é aí que entra o tal motivo especial, citado de passagem no último texto, que me faz ter tanto carinho por este filme. Em mais uma imersão histórica, os autores levaram para os cinemas o breve pontificado de João Paulo I. Aqui, ele não se chama Cardeal Luciani, como na vida real, mas Cardeal Lamberto (Ralf Vallone). É a ele que Michael Corleone recorre quando enfrenta problemas com o presidente do Banco do Vaticano, Arcebispo Gilday (Donal Donnelly), com um inescrupuloso político, Don Lício Lucchese (Enzo Robutti), e com um banqueiro, Frederick Keinszig (Helmut Berger, irreconhecível), ao tentar assumir o controle acionário da Immobiliare, a maior proprietária de imóveis do mundo, e limpar de vez todos os seus negócios. Além de Lamberto ser inspirado em Luciani, o que mais há de interseção com a realidade neste episódio? Vejamos.

No livro “Em Nome de Deus”, o detetive britânico David Yallop afirma que o Papa foi morto por envenenamento. Entre os possíveis motivos que levariam alguém a querer assassinar o Santo Padre estaria o escândalo financeiro do Banco Ambrosiano, instituição financeira gerida pelo banqueiro Roberto Calvi e que tinha como acionista o Banco do Vaticano, presidido pelo Bispo Paul Marcinkus. Em um rápido quem é quem, a Immobiliare seria o Ambrosiano, Keinszig, Calvi e Gilday, Marcinkus (os dois são americanos). E onde entraria Don Lício Lucchese nesta trama com ares rocambolescos? Bem, ele seria inspirado em Lício Gelli, um político cuja suas origens remontam ao fascismo e que tinha relações com todos estes homens. O assassinato do Sumo Pontífice jamais foi provado. No entanto, os autores dão asas a imaginação de quem adora uma boa teoria da conspiração brincando com os fatos, inclusive, citando o cardeal brasileiro Aloísio Lorscheider que foi votado no conclave que elegeu João Paulo I.

Nesta película, existe uma cena que se sobressai a todas outras: a da confissão. Em busca de aconselhamento, por indicação de seu velho amigo e protetor Don Tommasino (Vittorio Duse), Michael Corleone visita o Cardeal Lamberto. Em uma raríssima demonstração de fraqueza, se expõe e confessa seus pecados. No bojo, fala até da morte de Freddo (John Cazale). Não há um arrependimento visível, o que é preciso para a absolvição, mas há um remorso genuíno. Talvez, por esta circunstância, o futuro Papa o absolve assim mesmo. A cena é emocionante e dá um nó nas tripas. Al Pacino e Ralf Vallone parecem, de fato, estarem sentindo a emoção que embarga seus respectivos personagens. Esta rápida conversa é suficientemente intensa para criar laços entre ambos e justificar a eliminação final dos conspiradores. “Como é perigoso ser honesto”, diz Michael sobre seu novo amigo, mas, certamente, pensando no futuro que um dia vislumbrou para si. Em uma belíssima sobreposição de imagens, quando o Papa é encontrado morto, um Cristo crucificado é mostrado na ópera protagonizada por Anthony. A associação é evidente e imediata. Eles morreram por causa dos pecados dos outros.

Zasa, vivido por um Joe Mantegna em grande forma, é o primeiro antagonista a dar as caras, mas não é o principal. Como dizia Don Vito, mantenha os amigos por perto e os inimigos mais perto ainda. Seguindo esta lógica, é Sal Tessio (Abe Vigoda) que se bandeia para o lado dos rivais no final do primeiro longa e é Don Oswaldo “Ozzie” Altobello (Eli Wallach), padrinho de Connie e chefe da Família Tattaglia, que, mancomunado com Lício Lucchese, está por trás das investidas contra o Império Corleone. O tempo todo ele se faz passar por um bom amigo. O vemos na festa do começo e em muitos outros instantes. E quando a ação se desloca para a Sicília, em um momento em que o filme referencia “O Leopardo” (1963), de Lucchino Visconti – ao explicar para os filhos, Anthony e Mary, a razão da ilha ser tão violenta, Michael evoca questões históricas, tal qual Don Fabrízio Cobrera (Burt Lancaster) ao justificar o temperamento dos sicilianos – ele vai junto para, lá, desferir seu golpe final. A traição mais pérfida. Só que os Corleones são mestres na arte de se antecipar e a traição já não é segredo há bastante tempo.

Laranjas trevosas. Qualquer resenha que se preze, ao falar sobre as curiosidades da trilogia, lembra que laranjas são um sinal de mal agouro. Quando elas aparecem é porque, logo, alguém sofrerá um atentado ou morrerá Exemplos não faltam: Vito está chupando uma laranja um pouco antes de falecer. Ou, na cena supracitada do hotel em Atlantic City, quando tudo treme com a aproximação do helicóptero e uma laranja rola pela mesa em torno da qual os dons estão reunidos. Só que esta não é uma resenha que se preze e preferi explorar particularidades que não leio em outros lugares. Entretanto, uma destas situações com laranjas chamou a minha atenção e por um único momento decidi entrar neste assunto. Durante o encontro com o futuro Papa, Michael Corleone tem uma queda de glicose e pede o que? Um suco de laranja. Por que não um suco de damasco, fruta muito popular na Itália?

Juntos, os três filmes acumularam 28 indicações ao Oscar e levaram nove prêmios. Há algumas injustiças ao longo deste percurso. Todavia, se eu tivesse que apontar o nome de um único injustiçado, este seria o do diretor de fotografia Gordon Willis, ignorado nas premiações de 1973 e 1975; finalmente lembrado na de 1991. Coincidência ou não, para mim, é no terceiro longa-metragem que assistimos ao ápice da sua mágica na trilogia. Igualmente talentoso, o fotógrafo Conrad Hall o apelidou de “O Príncipe das Trevas”. Tal epiteto é justificado pela maneira como Willis usava as sombras a seu favor. Reparem em todas as cenas fechadas, especialmente as dos escritórios, quando Vito e Michael Corleone conversam com seus aliados e inimigos. Muito da imagem que cultivamos e alimentamos, em nosso imaginário, sobre estes homens, advém da forma como eles foram fotografados.

Se pararmos para pensar, O Poderoso Chefão III é uma síntese de todos os temas abordados por Francis Ford Coppola e Mario Puzo ao longo da trilogia. Já idoso, Michael ainda luta para não ser excluído do “Destino Manifesto” e viver o “Sonho Americano”, finalmente, de forma honesta. Com bastante tempo de atraso, está prestes a cumprir o que prometeu a ex-esposa: tornar os negócios da Família Corleone legais. Para isto, evita sujar as mãos. Transfere o controle das atividades ilegais para Vincenzo e entrega a este a missão de se vingar de Don Altobello, Don Lício Lucchese, Arcebispo Gilday e Frederick Keinszig – Joey Zasa já está morto sem o seu consentimento. Finge que não sabe o que vai acontecer e se engana acreditando que esta pantomina o livrará de qualquer pecado. No entanto, continua pecando, o que só evidencia o contraste entre o sacro e o profano. A única condição que impõe ao sobrinho é renunciar ao amor de Mary. Assim, acredita que estará protegendo a filha de ter um destino igual ao de Apolônia ou de sofrer as mesmas decepções que a mãe. Contudo, uma bala perdida o fará descobrir que controlar o destino nunca foi uma opção.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: The Godfather: Part III
Direção: Francis Ford Coppola
Produção: Fred Fuchs, Nicholas Gage
Roteiro: Vincent Patrick, Mario Puzo, Dean Riesner
Elenco: Al Pacino, Diane Keaton, Talia Shire, Andy Garcia, Eli Wallach, Sofia Coppola, Joe Mantegna, George Hamilton, Bridget Fonda, Raf Vallone
Distribuição: Paramount
Data de estreia: sex, 15/03/91
País: Estados Unidos
Gênero: drama
Ano de produção: 1990
Duração: 170 minutos
Classificação: 14 anos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
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