Crítica de Teatro | O Processo

Antonio de Medeiros

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14 de setembro de 2015

Imaginem-se na pele de um ator em cena que não sabe suas falas, nem suas marcações no palco e menos ainda que fim terá seu personagem. Isso pode parecer um dos piores pesadelos para qualquer ator. Porém, é muito próximo da sensação angustiante vivida pelo personagem Josef K. no romance “O processo” de Franz Kafka. O personagem K recebe, na pensão onde vive, a visita inesperada de dois guardas que o avisam que ele responderá a um processo judicial, porém não o informam de qual crime ele é acusado.

Kafka costuma iniciar suas histórias com o personagem principal tendo que lidar, de forma bem direta, com uma nova realidade; seja a de acordar transformado em um inseto como em “A metamorfose”, ou ser acordado, como no caso de “O Processo”, e descobrir que foi acusado de um crime e a partir de então ser inserido num processo burocrático e sem saída.

A proposta da Companhia Teatro Voador Não Identificado de ter em cena um ator que não ensaiou nem decorou a adaptação teatral é bastante original e corajosa. Foi essa iniciativa que deu ao grupo uma indicação ao Prêmio Shell na categoria de inovação deste ano. Fatores como o suporte do elenco fixo, que apoiam o ator que faz Josef K, ao mesmo tempo em que permitem que haja momentos de improvisação tanto do elenco fixo quanto do ator convidado e a precisa marcação do diretor Leandro Romano na entrada e saída dos outros personagens, e no revezamento constante da presença de ao menos um membro do elenco fixo com o ator convidado, sem abandoná-lo em cena completamente, colaboram para o sucesso dessa experimentação cênica.

Essa sensação de desconforto vivida pelo ator causa nele e na plateia, simultaneamente, um aumento da atenção a tudo o que ocorre em cena e uma reação mais espontânea e imprevista de ambos os lados. O elenco fixo se reveza em mais de um personagem e consegue, de um modo geral, construir a individualidade de cada um deles. João Pedro Zappa e Joice Marino conseguem com mais destaque e agilidade manter o humor e o improviso em cena.

A cenografia de Elsa Romero bastante simples, mas eficaz, tem uma espécie de cortina ao fundo, funcionando muito bem para as diversas cenas, com um efeito maior na cena da cadeia, quando uma das estruturas de pano sobe, formando a cela.

A escolha do grupo em trabalhar o texto com humor também foi arriscada, no entanto, outro acerto. Por causa dos conflitos em família, principalmente com a relação problemática com o pai, o comportamento do autor dentro de casa era mais quieto e isolado, o oposto ocorria fora de casa, já que foi descrito por estudiosos e por um dos seus maiores amigos, Max Brod, como um sujeito brincalhão e divertido.

O humor na peça funciona para ressaltar o caráter do absurdo das situações vividas por Josef K. Esse tom se perde apenas, por um brevíssimo momento, na cena da visita ao estúdio de Titorelli, com as meninas que indicam a porta do pintor. Essas personagens, meio “coelho da Alice”, uma delas corcunda no livro, possuem algo mais para o estranhamento e excentricidade ou grotesco do que para o ridículo mostrado com as bailarinas em cena.

A sessão da última quinta contou com a destemida participação do ator Paulo Verlings. Para a próxima semana, interpretará Josef K a talentosa Lília Cabral.

A façanha de unir a bem sucedida proposta cênica com o humor gerado pelo estranhamento e tensão frente ao desconhecido do texto de Kafka fazem com que cada espetáculo tenha sua dinâmica própria e intensificam a máxima defendida por quem faz e ama teatro, de que cada apresentação é única.

Para quem deseja saber mais sobre o livro “O Processo” e a figura de Franz Kakfa, recomendo a entrevista com a professora da USP Celeste H.M de Sousa, que pode ser acessada no link a seguir: https://www.youtube.com/watch?v=mVCYpeaff_4

:: FICHA TÉCNICA

Concepção: Leandro Romano e Luiz Antonio Ribeiro
Direção: Leandro Romano
Dramaturgia: Luiz Antonio Ribeiro (baseado na obra de Franz Kafka)
Elenco: Amanda Grimaldi, Bernardo Valença, Cirillo Luna, Gabriel Vaz, Joice Marino/Larissa Siqueira da Cunha e João Pedro Zappa/Pedro Henrique Müller
Cenografia: Elsa Romero
Figurino e iluminação: Gaia Catta e Lia Maia
Trilha sonora original: Felipe Ventura e Gabriel Vaz
Assistência de direção: Julia Bernat
Assistência de cenografia, figurino e iluminação: Fernando Klipel
Consultoria teórica: Danrlei de Freitas
Filmagem e fotografia: Clarissa Appelt, Felipe Xavier e Isabel Stein
Direção de produção: Leandro Romano
Produção executiva e casting: Renata Magalhães
Realização: Teatro Voador Não Identificado

Antonio de Medeiros

Antonio de Medeiros apenas digita os textos entregues pela própria Patty, ou por seu sobrinho Fernandinho, em papeizinhos escritos à mão (cartõezinhos amarelados de fichamento) ou datilografados, às vezes manchados de café ou quase sempre de whiskey. Ela me fez prometer que eu não modificaria nem uma única vírgula. De modo que não me responsabilizo por sua opinião e pitacos. (Antonio De Medeiros é formado em Turismo pela UniRio. Atualmente, é funcionário público. Passou pela CAL e pela Escola de Cinema Darcy Ribeiro. Ama Cinema, Literatura e Teatro. Sonha em ser escritor. Enquanto escreve peças e um romance, colabora para o site "Blah Cultural")
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