CRÍTICA | ‘Fé Corrompida’

Bruno Giacobbo

|

11 de fevereiro de 2019

Profissional veterano, Paul Schrader foi um dos jovens turcos que, nos anos 70, tomaram de assalto Hollywood e revolucionaram a indústria cinematográfica americana. No entanto, apesar do reconhecimento dos críticos e do público em relação a excelência do seu belo trabalho, estranhamente, ele nunca obteve o mesmo prestígio junto aos seus pares. Roteirista de preciosidades como “Operação Yakuza” (1975), “Taxi Driver” (1976), “Touro Indomável” (1980) e “A Última Tentação de Cristo” (1988), o cineasta colecionou prêmios, mas ainda faltava uma indicação ao Oscar. Até agora, claro. A merecida indicação e o reconhecimento dos seus pares vieram com Fé Corrompida (First Reformed), um dos seus filmes mais intimistas.

Leia mais:

– BAFTA 2019 CONSAGRA ‘ROMA’ E ‘A FAVORITA’
– BAÚ DO BLAH! | ‘O TESOURO DE SIERRA MADRE’ (1948)

O protagonista desta história é o reverendo Ernst Toller (Ethan Hawke, na atuação de sua carreira), pároco de uma pequena igreja, a Primeira Reformada (em inglês, First Reformed), que está prestes a completar 250 anos de fundação. Apesar desta ser uma época festiva e em que pese a empolgação do seu superior, o reverendo Joel Jeffers (Cedric the Entertainer), líder da Abundant Life, uma megacongregação religiosa a qual a Reformada é vinculada, a expressão facial de Toller nunca é de alegria. O religioso anda para lá e para cá, realizando seus afazeres, celebrando missas para meia dúzia de pessoas e escrevendo um diário. O longa-metragem é quase todo narrado por ele através das anotações que faz diariamente.

Um dia, após uma dessas missas, ele recebe a visita de Mary Mensana (Amanda Seyfried também em ótima interpretação). O marido dela, Michael (Philip Ettinger), acabou de voltar do Canadá e está deprimido. Mal tem forças para sair da cama e ir trabalhar. Ela deseja que o reverendo converse com ele e, de alguma maneira, o ajude a reagir. Um conselho de ordem espiritual ou uma simples palavra amiga talvez sejam de grande valia. Dito e feito. Os dois tem um primeiro encontro, conversam e o rapaz, que se revela um ardoroso ambientalista, parece se animar um pouquinho. Só que aqui, a partir deste ponto da história, uma pergunta se impõe. Quem precisa de ajuda: o rapaz ou o reverendo?

Paul Schrader escreveu e dirigiu um filme sobre fé, esperança, desespero e, acima de tudo, coragem. Coragem para seguir em frente e viver. É nítido, desde o começo, que Ernst Toller é assombrado por algo do seu passado. Nada nos é dito antecipadamente. O jovem turco de outrora, em plena forma, ainda sabe como contar uma história e deixar seu público curioso. Já Michael é assombrado pelo presente: aquecimento global, desmatamento, poluição… E com a consciência ambiental adquirida na época em que viveu no delta do Rio Mackenzie, no norte do Canadá, é natural que ele tema pelo futuro dos homens. Como é dito lá pelas tantas, os dois vivem no coração da escuridão, chafurdados em seus medos.

Foto: A24 / Divulgação

O que Ernst e Michael podem representar um para o outro? Ernst pode representar para Michael a salvação. Já Michael pode representar para Ernst a perdição. Se seguiu em frente até agora, desempenhando suas obrigações pastorais, o reverendo deve isto a sua fé. É através dela que vislumbrou uma nesga de esperança e foi dela que tirou a coragem necessária para continuar de pé. Acontece que, ao confrontar os medos do outro, ele será testado e aí talvez sua fé não seja suficientemente forte. Por sua vez, se Michael precisa da ajuda de Ernst é porque, até aqui, só vivenciou o desespero. Os alicerces do outro podem ser o que ele necessita para se levantar. E entre eles está Mary: o alicerce mais firme desta história.

Em Portugal, o filme recebeu o nome de “No Coração da Escuridão”. Eu penso que, por aqui, ele deveria ter recebido o mesmo título, pois esta é uma versão que diz muito sobre Fé Corrompida. No fim das contas, a obra se revela intimista ao desnudar o que se passa no coração e na alma de seus personagens, criações que confirmam a vitalidade de seu criador. Paul Schrader recebeu uma justíssima indicação ao Oscar como roteirista e poderia estar concorrendo também como diretor. Contudo, as não indicações que mais lamento são a de Ethan Hawke e a da magnífica fotografia de Alexander Dynan que, com seu ótimo jogo de luz e sombra, consegue amplificar todos os medos interiores dos protagonistas.

Desliguem os celulares e excepcional diversão.

::: TRAILER

::: FICHA TÉCNICA

Título original: First Reformed
Direção: Paul Schrader
Elenco: Ethan Hawke, Amanda Seyfried, Philip Ettinger, Cedric the Entertainer
Distribuição: A24
Data de estreia: sex, 15/01/2019, direto em streaming
País: Estados Unidos
Gênero: drama, thriller
Ano de produção: 2018
Duração: 113 minutos

Bruno Giacobbo

Um dos últimos românticos, vivo à procura de um lugar chamado Notting Hill, mas começo a desconfiar que ele só existe mesmo nos filmes e na imaginação dos grandes roteiristas. Acredito que o cinema brasileiro é o melhor do mundo e defendo que a Boca do Lixo foi a nossa Nova Hollywood. Apesar das agruras da vida, sou feliz como um italiano quando sabe que terá amor e vinho.
O que sabemos sobre Wicked Boa noite Punpun Ao Seu Lado Minha Culpa Lift: Roubo nas Alturas Patos Onde Assistir o filme Lamborghini Morgan Freeman